Capítulo 54. O Produto Disforme de um Pecado

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FAUSTO
Que sou eu, se não posso alcançar, afinal,
A coroa com louros da nossa humanidade,
A que todos almejam com tanta ansiedade?

MEFISTÓFELES

Não és mais, meu senhor, do que és: um mortal!
Perucas podes ter, com louros aos milhões.

Alçar-te com teus pés nos mais altos tacões,
Serás sempre o que és: um pobre ser mortal!

Goethe

Acordei aturdido, tossindo e vomitando a água que entrou em meus pulmões. O corpo quebrado e em partes estourado, estalava voltando cada peça de osso e músculo para seu lugar.

Ao redor não havia muita coisa no breu além de um corredor alto cujas paredes eram feitas de tijolos cinzentos. O espaço enorme daquele lugar fazia com que, ao menor de meus movimentos, o ruído se espalhasse e voltasse para mim causando um eco absurdo, como por exemplo quando mexi meus pés sobre a água.

Quanto à Damian, eu o procurei com meus olhos, com meus ouvidos, com meu faro e até cheguei a chamá-lo, porém era claro que ele não estava junto comigo, não havia cheiro ali além de água, decomposição, terra molhada e ainda algo salgado parecido com suor humano.

Engoli em seco amaldiçoando meu estado quando olhei para cima e percebi a abertura grande demais no teto cupular de onde eu havia caído. Aquilo me mostrava que eu estava no mais profundo subterrâneo enquanto Damian ainda estava sozinho em algum lugar lá em cima.

Um bolo se formou em minha garganta quando o gosto de sangue me molhou a língua e então tossi sobre as costas da mão, sentindo o líquido vermelho ser expelido de minha garganta junto com a prata que corroia as paredes internas de meu corpo.

Ainda sentado sobre a água gelada, minha cabeça começou a doer. Passei as mãos no rosto para retirar os cabelos molhados e grudados às minhas bochechas quando percebi minhas mãos trêmulas, a sensação de humilhação e a vontade de me esconder debaixo daqueles destroços para sempre dando lugar ao ódio e a sensação de formigamento debaixo de minha pele.

O sangue de Bóris fervilhando dentro de minhas veias, incomodando e coçando como se pequenas lagartas estivessem passeando inquietas dentro de meu corpo, deslizando para dentro de meus órgãos e me perturbando os sentidos.

Soltei o ar quente de minha boca, apertando os braços com os dedos ainda sentindo fisgadas do ombro dilacerado, aproximando os joelhos do peito e por fim enterrando minha testa entre eles, encolhendo-me.

Então transformado numa pequena criatura medíocre e mesquinha, comecei a admitir que a vida para mim era daquele modo.

Não haveria rendição, não haveria recompensa, não haveria nada além de um vazio escuro e frio me aguardando sorrateiramente todo esse tempo. Minhas mãos continuariam frias e meu coração ainda seria o mesmo pedaço de carne atrofiado.

Mas havia um resquício guardado no fundo de minha mente que ainda me trazia boas lembranças, mesmo que fossem antigas demais.

Aquele garoto doce que se tornou uma depravação aterrorizadora estava maldosamente sendo usado para estimular uma guerra civil e me manter escondido debaixo das asas de Lilith, a tal Bruxa do Deserto. Mephisto estava sendo usado para me deixar do modo patético como eu estava, tão humilhado, magoado e irritado.

Mephisto que antes fora Isaque, aquele menino de cílios longos e pretos que me havia feito um jardim de roseiras com as próprias mãos porque eu havia lhe segredado sobre o quanto meu passatempo por observar e sentir o odor doce daquelas coisas era patético.

O Vampiro e o Romani - Livro O1  {CONCLUÍDO}Onde histórias criam vida. Descubra agora