Capítulo O1- Natureza Humana

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"Não falo, não suspiro, não escrevo seu nome.
Mas a lágrima que agora queima a minha face,
me força a fazê-lo."

Lord Byron

O homem quase sem vida gemia aos meus pés palavras indecifráveis enquanto piscava os olhos revirados, agonizando antes de dar seu último suspiro.

Eu ainda segurava sua cabeça enquanto meu corpo estremecia ofegante e inebriado de prazer pela sensação quente preenchendo meu estômago, aquele sangue roubado fervente entrando em minhas veias e formigando a pele sob meus músculos.

Suspirei enquanto minha visão parecia nublar com névoa.

Nesse momento, foi quando olhei para um ponto fixo qualquer e me atentei ao som, o som de asas angelicais, um coro de pássaros e anjos onde as ninfas tocavam harpas enquanto os deuses se embriagavam de vinho.

Talvez o tempo que passei sem me alimentar estivesse me fazendo ter alucinações, talvez os milênios de minha vida morta-viva estivessem afetando minha lucidez, mas o som... Aquele som mudou algo.

Larguei o corpo morto aos meus pés, limpei a boca com a manga da casaca longa, tomei do chão a bengala de lâmina e segui meu caminho até àquela tentação do diabo que me ludibriava cada vez mais que meus ouvidos aguçados captavam da melodia. Ajustei as luvas e apertei a cartola enquanto pendia mechas loiras indesejáveis sobre o rosto.

E lá estava o garoto de cabelos longos e vermelhos que caíam pela face escondendo um de seus olhos, os dedos calejados, seguravam o arco da rabeca esfregando com raiva e frustração  as cordas ali presentes no instrumento.

Ele se vestia como um cigano, mas claramente não se parecia com um. Podia ver os brincos pendurados em suas orelhas e os tecidos coloridos com alguns acessórios metálicos. Os cabelos estranhamente saturados e vermelhos como sangue caiam livremente sobre os ombros, enquanto seus olhos permaneciam fechados, apreciando o som formidável que produzia e os lábios se curvavam em um sorriso esplêndido.

Tinha o rosto como o de um dos anjos pintados nas igrejas de minha querida Florença. Não sei ao certo até hoje, se as pessoas paradas a sua volta apreciavam seu rosto venerável ou a sua música assombrosa.

Seu coração batia com o som da música, podia ouvir também sons saírem de seus lábios entreabertos cantarolando.

Com certa hesitação estranha, me juntei a aglomeração de pessoas que o observava para depositar um de meus anéis de ouro dentro de sua caixa já cheia de moedas. Eu não andava com dinheiro junto comigo na maior parte do tempo e naquele momento eu me arrependi do costume.

O garoto olhou para mim com a íris azul e a música parou bruscamente. Uma corrente elétrica estranha se apossou dos meus ossos quando a pupila brilhante como a de um gato pareceu me perfurar como uma faca de lâmina em brasa.

Seu corpo se virou por completo para mim e inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse me esperando há tempos para algo e eu fosse o atrasado rude.

Eu queria dizer algo, estava procurando as palavras certas quando alguns soldados caminharam em sua direção gritando insultos sobre terem procurado o garoto por muito tempo. As pessoas dispersaram e ele se agachou fechando a caixa de moedas e correndo com sua rabeca em mãos. Seus pés descalços chisparam com rapidez e flexibilidade como se estivesse voando, provavelmente já esperando acontecer tal coisa. Ele voou rápido deixando apenas a massa vermelha de seus cabelos longos demais se misturar com o vento.

Senti seu olhar sobre mim antes de que ele desaparecesse por completo.

O seu cheiro invadiu minhas narinas, pude até enxergar as tulipas e a madeira mofada que continham o eflúvio que emanava de seu corpo. Pensei em ir embora, e quase me esqueci do que havia ido fazer nas ruas.

O Vampiro e o Romani - Livro O1  {CONCLUÍDO}Onde histórias criam vida. Descubra agora