"Lembro-me de tudo sobre isso - com esforço. Eu vejo tudo, como os mergulhadores veem o que está acontecendo acima deles, através de um meio, denso, ondulante, mas transparente. "
Carmilla - J. Sheridan Le Fanu
Eu gosto de neve. Os flocos brancos, delicados e gelados, são uma das coisas que mais me dão aquela sensação deliciosa de nostalgia e de lembranças boas.
Eu acho que começou a nevar naquele momento, os flocos brancos estavam sendo levados para meu rosto sujo e para os ombros daquele homem me apontando aquela arma.
Patrícia gostava de neve, e mesmo sob meus protestos, ela saía de casa segurando a enorme barriga com uma das mãos, seu rosto vinte anos mais velho do que o meu e ainda tão belo quanto o céu rosado de fim de tarde, estava sorrindo e voltado para cima enquanto estendia os longos dedos para o alto e pegava aqueles pequenos flocos nas pontas deles, ela também estendia sua língua para catar aqueles pedaços de gelo e esperar que eles derretessem. Eu sempre a repreendia, mas antes eu passava ao menos alguns poucos segundos observando aquela cena, aquele sentimento de paz.
Eu não sabia o motivo de estar vivendo aquelas lembranças antigas novamente, talvez a visita ao subterrâneo do coliseu e o sentimento genuíno que eu sentia por aquela mulher vieram me afetar depois de tanto tempo. Senti dor por ainda conseguí-la ver se virando no meio da neve para mim, o rosto sorridente pouco mais velho do que o meu gargalhando com uma alegria contagiante como se aquela situação em que estávamos vivendo fosse normal, como se ela gostasse de tudo, até do cheiro de mofo da casa contanto que estivéssemos juntos.
Também havia Mephisto, o homem que um dia fora uma criança chamada Isaac, ao contrário de Patrícia, não gostava nem um pouco do frio. Talvez fosse pelo fato de Mephisto ter sido uma criança frágil, de que qualquer sopro gelado em sua pele lhe trazia enfermidades horrendas para seus pulmões. Ainda me lembro de seus pequenos dedos trêmulos segurando o cobertor de peles sobre os ombros, subindo naquele sofá em frente à lareira, se aninhando sentado ao meu lado e fechando os olhos pesados de sono enquanto caía com a cabeça em meus ombros como faz um gato.
Aquelas lembranças estavam cada vez mais vívidas, e me perguntei se minha mente estava se acostumando rápido com o fato de que minha morte se aproximava, me dando a misericórdia de ainda me permitir lembrar dos melhores momentos que tive ao longo dos séculos, porém aquelas memórias não me davam prazer, elas me deixavam possesso. Havia um motivo para que eu engolisse as situações e as enfiasse no fundo de meu cérebro, havia um motivo para que eu as esquecesse.
"Onde você está?" Perguntei a Carmilla, sua voz logo reverberando em minha mente.
"Recolhendo os restos daquelas Hárpias traidoras e observando a recepção de Salomé para com os humanos e vampiros feridos."
Limpei uma gota de suor vermelho que teimou em descer de meu couro cabeludo quando me lembrei das chamadas colméias. Aquelas pessoas que Salomé estava recebendo, no futuro seriam como sapos dissecados em sua sala subterrânea.
"De qualquer forma, preciso que abra um portal para alguns vampiros que encontrei."
"Os seus ciganos junto a Cléo e Sebastian, estão todos na igreja de Lucas, o tal padre. Posso mandar estes que encontrou agora para o mesmo destino, não é bom que estejam aqui. Você também, você deve acompanhá-los. Eu tomarei conta de todo o resto."
"Você... quer que eu me esconda?"
"Para o que você serviria aqui?" Perguntou cansada. "Você me atrapalha... A não ser que queira vir para ser telespectador, ou para morrer."
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O Vampiro e o Romani - Livro O1 {CONCLUÍDO}
VampirosOrfeo é um vampiro solitário, vaga pela terra há quase dois mil anos apenas com os próprios demônios, quando como em uma luz no fim do túnel, acaba conhecendo um humano enfermo á beira da morte. Sucumbido pelo egoísmo e pela dor de perder sua única...