"No sonho, eu entrei algumas vezes em casas escuras que não conhecia. Casas estranhas, medonhas, assustadoras. Quartos negros que me envolviam até eu não conseguir mais respirar."
Astrid Lindgren, Mio, meu filho
Rússia, 1848
Naquele momento, Bóris estava ofegante.
O vapor branco saía de seus lábios enquanto limpava o suor escorrendo de sua testa, colando os curtos fios ruivos na pele cor de mel escuro.
O corpo grande, no auge de seus vinte e dois anos de idade, pulava e corria entre os telhados e torres de forma tão rápida quanto uma raposa vermelha e astuta.
Era madrugada, os flocos de neve pintavam o casaco grosso sobre seus ombros, cabeça e cílios de branco enquanto saltava e dava cambalhotas ágeis sobre os telhados daquelas casas e prédios, ambas cimitarras presas em suas costas envolvidas por tecido tilintando uma contra a outra.
Lâminas geladas ansiosas pelo sangue quente de seu pai.
Bóris parou sobre a borda do telhado, abaixou o tecido negro que cobria metade de seu rosto e inalou o ar gelado com os olhos semcerrados, expirando em vapor quente pela sua boca.
As luzes coloridas daquele país que ele há muito não visitava, ainda se mantinham coloridas e acesas tremulando sobre os rostos daqueles cidadãos.
Bóris sentia o ódio daquele lugar tão calmo acumular em sua garganta, descer até seu estômago e formigar suas mãos.
Seu velho pai era um péssimo governante, ele não se diferenciava de um pedaço de esterco inútil e isso não mudou ao longo dos anos.
Aquelas pessoas que ele observava nas ruas, rindo em suas vestes coloridas eram todas ricas vindas da burguesia. Contudo, do outro lado da cidade, haviam milhares de pessoas de rostos cansados, pobres cultivadores com lotes de terra minúsculos vivendo em choupanas, se misturando aos porcos e às vacas como se fossem seus iguais.
Epidemias, cólera e desnutrição reinavam naqueles lugares de pobreza onde a maioria das pessoas não tinha o que comer e morriam apenas com a bile no estômago enquanto o czar fazia festas, comprava carruagens pomposas e enfeitava sua mansão com tanto esbanjo.
Era como uma linha tênue entre o céu e o inferno.
Bóris de pé naquela beira, se permitiu lembrar de que havia passado três anos naquela Rússia mergulhado em esterco e lama junto com os outros cidadãos depois que foi espancado, torturado e amarrado pelas mãos em uma árvore em meio á uma floresta enquanto Mephisto lhe dizia com detalhes quais partes de seu corpo seriam comidas pelos animais, quais delas eram mais moles e suculentas para que fossem arrancadas primeiro.
Aquele Strigoi estava especialmente possesso porque sentia uma completa obsessão e sentimento de dominação por Orfeo, e assim acreditava que Bóris estava se colocando em seu caminho como um pedregulho pesado, tomando aquele Mestre que deveria ser apenas seu para si mesmo.
Mal sabia Mephisto que Bóris não queria tomar nada de ninguém.
Estava sendo forçado por Lilith a manter aquela ilusão, a viver junto daquele Strigoi de cabelos louros e cabeça tola, a ter que se sujeitar a humilhação de desejar os toques daquelas mãos quentes e pecadoras porque Bóris era tão miserável que precisava de um demônio asqueroso para lhe dar o afeto que não teve de nenhum lado.
Quando adolescente, o modo que conseguiu para recuperar a dignidade perdida de por um momento pensar em amar Orfeo, foi começar a repetir em sua cabeça que enojava os dedos brancos daquele Strigoi sobre sua pele, odiava ouvir sua voz exageradamente doce e seu sorriso gentil.
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O Vampiro e o Romani - Livro O1 {CONCLUÍDO}
VampireOrfeo é um vampiro solitário, vaga pela terra há quase dois mil anos apenas com os próprios demônios, quando como em uma luz no fim do túnel, acaba conhecendo um humano enfermo á beira da morte. Sucumbido pelo egoísmo e pela dor de perder sua única...