Realidade inescapável

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India

Depois de ter regressado, a minha mãe não me deixou a sós por um minuto que fosse. Não a culpei, talvez achou que eu fosse desaparecer do nada caso me voltasse as costas. Muito aconteceu nos últimos tempos.

Era lamentável o facto de Michael não me levar a sério, especialmente quando tinha a mala nas minhas mãos; ele achou que fosse mais uma crise melodramática da minha parte. Dei por mim à procura por algum pretexto para sair dali e a presença de Alison foi perfeita para esse fim. Quis regressar a casa, para o frio que me aguardava e para os olhos desiludidos dos meus pais que mal sabiam o que lhes esperaria quando saísse pelas portas do aeroporto. Estava cansada, farta até, de seguir dia após dia com Michael. Agíamos como um casal de meia-idade que carregava todas as cruzes pesadas da vida numas costas despidas, como se gostássemos de sofrer a dobrar. Porém, alguém tinha de tomar as rédeas e guiar-nos para uma estrada melhor e mais madura, e, feliz ou infelizmente, esse alguém foi eu.

Sacudi a cabeça, afugentando as pesadas memórias para bem longe. Tinha de me concentrar em comer o pequeno-almoço sob os olhos atentos de Leah.

— Estes bolos são bons — forcei-me a dizer depois de uma minúscula dentada. — São da padaria ao fundo da rua?

— Sim, tal como tu gostas — concluiu com um sorriso. — Eles têm um novo ajudante ao balcão, o que é ótimo! O velho Jeffrey já não dava conta do recado... Sempre tão lento.

Anuí, bebericando o chá quente. Tinha no tabuleiro dois pequenos bolos, uma chávena com camomila e uma pilha cada vez maior de comprimidos. Devem estar curiosos sobre como introduzi o tema do alienígena aos meus pais, mas tudo o que posso dizer é que há certos momentos nas nossas vidas que, quando uma situação já é tão complicada, todos parecem alinhar num pacto silencioso sobre como não serão tecidos comentários nem elaboradas perguntas sobre como, porquê e quando.

Com a ajuda de uma cadeira de rodas, a senhora do aeroporto empurrou-me pelos corredores cheios de gente. Trazia a minha mochila nas suas costas enquanto tentava conversar comigo sobre como a comida do aeroporto era absolutamente detestável. Agradeci o seu esforço em quebrar o silêncio entre nós, mas estava demasiado preocupada com o facto de voltar a reencontrar os meus pais dentro de minutos; estava a preparar-me para os olhos caídos no chão, as caras marcadas de rugas preocupadas e chocadas quando pusessem os olhos em mim. Para além do facto de precisar de ser empurrada numa cadeira, tinha também uma barriga enorme, impossível de ser escondida. Foi ali, quando as portas baças se abriram, que choquei com a dura realidade. A minha mãe, ainda que surpreendida, não demorou nem um segundo a correr até mim e a inundar-me com as suas lágrimas de felicidade por me voltar a ver. Por outro lado, o meu pai permaneceu lá ao fundo, de mãos no bolso, sério e branco como o cal. No meio de beijos e de perguntas sucessivas sobre como estava e como tinha conseguido fazer uma viagem tão longa sozinha, não tive as forças para responder. Limitei-me a puxá-la para um abraço, tinha saudades do seu perfume.

— Na tua última consulta, o médico disse que a tua condição está cada vez mais frágil. — Torci ao nariz por ouvir o assunto que sempre queria escapar. — Ainda não consigo entender por que fugiste... pensava que confiavas em mim.

— Estava demasiado assustada para pensar como deve ser... desculpa-me. — Talvez pela sensibilidade da situação, a minha mãe desabou em lágrimas novamente. Agarrou as minhas mãos geladas e beijou-as também o que, por sinal, não me aqueceu.

— E como ficaram as coisas com o Michael? — secou os cantos dos olhos e forçou um sorriso fraco. — Tenho de saber porque não voltou ele contigo.

Foi a minha vez de suspirar. Michael era ainda um assunto ultrassensível, um botão que esteve escondido por debaixo de uma caixa de vidro, a ser tocado apenas em emergências; caso alguém lhe tocasse fora de um contexto urgente, seria penalizado. Naquele caso, a única penalização foi um longo tempo de silêncio.

Ele andava de um lado para o outro no quarto, apertava a cana do nariz e falava para consigo mesmo. Ocasionalmente parava para me fixar, mas sempre voltava ao mesmo comportamento. Antes que ficasse enjoada pelas suas curvas e contracurvas, fechei aos olhos, à espera que encontrasse todas as palavras precisas para formular uma frase. Foi quando disse:

— Não podes simplesmente ir. Não agora, pelo menos! Ainda temos tanto para viver aqui e...

É aí que te enganas — interrompi. — Tu, sim, tens muito para viver e experienciar aqui; na tua casa, junto dos teus amigos, livre para fazer o que sempre quiseste fazer.

— Tu também, India. Eu quero que faças parte deste cenário, quero que fiques ao meu lado.

Seria mentira se dissesse que parte de mim não se comoveu pela impossível realidade das suas palavras. Uma atrevida lágrima caiu, denunciando a minha enorme vontade em ficar ao seu lado apesar de todas as adversidades até então vividas. Ainda que a nossa companhia não fosse a mais harmoniosa, continuava a ser difícil imaginar uma vida em que Michael não estivesse ao meu lado, mesmo que isso implicasse tornar a sua vida igualmente miserável como a minha. Era importante pôr um travão nesta loucura.

— Tu sabes quais são os meus sentimentos por ti, não sabes?
— Comecei debaixo de um soluço. — Mesmo que os dias aqui não tenham sido perfeitos, continuas presente no meu coração, e é justamente por isso que temos de parar.

Tentei alcançar as suas mãos, mas a confusão e o receio afastaram-mo de mim. Tornou a andar de um lado para o outro, mas com uma intensidade diferente; os seus pés batiam no chão e a sua respiração estava pesada.

— Estás... — Fechou os olhos antes de prosseguir. — Não estás a acabar comigo, pois não?

Ainda que não me deixasse tocar-lhe, pus-me à sua frente. Os seus olhos verdes previram aquilo que os meus lábios estavam prestes a dizer. Abanou a cabeça, agarrou o cabelo com força e depois olhou-me com um rosto vermelho.

— Porquê? — A sua voz trémula fez-me sentir culpada. — O que é que fiz de mal? Por favor, nada disto pode ser por causa da Alison...

Ainda agitado, deixou-me entrelaçar os seus dedos nos meus.

— Eu estou tão grata por tudo aquilo que vivemos. Sem ti, nada disto teria acontecido e eu amo-te por isso. E, justamente por te amar tão verdadeiramente, tenho de te deixar ir.

— Não, não... India, chega.

— Eu não te posso prender nem te condenar a uma ruína inevitável. Tens o direito de ser feliz despreocupadamente. Mereces dias longos na praia, festas malucas com amigos incansáveis e uma Alison também.

— Achámos por bem afastar-nos, nada demais.

Tudo estava na ordem que sempre deveria ter estado. Michael estava no seu sítio feliz e eu estava de volta à minha realidade inescapável. Tranquei a porta a quaisquer outras memórias vividas com o rapaz de cabelos coloridos ali no sofá, no meu quarto ou em cada recanto escondido de Fall River. Era tempo de o esquecer.


Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora