Um quarto sem janelas

233 24 5
                                    

India

Não valia de nada adiar o inadiável e estar entregue a uma incógnita. Como já parecia ser uma rotina — mesmo que fosse desagradável atribuir esse nome a algo do género — tinha realizado mais uma data de exames numa clínica distinta das outras duas que havia frequentado; desta vez foram exames com uma natureza diferente, como fora politicamente dito. Assim, acabei por receber uma chamada da clínica a pedir que lá fosse com urgência. Na altura assenti, talvez anestesiada pelos longos meses de definho, sem conseguir digerir o que real significado de urgência. Estava dormente em relação a tantos aspetos da minha vida, sendo um deles o ambiente lá em casa; se antes estava tenso, certamente não melhorou com o tempo. A natureza nervosa da minha mãe não lhe deixou comer, especialmente quando me via deitada, imóvel, durante grande parte do dia. O meu pai, por outro lado, afundou o seu nervosismo em comida; a perfeita combinação de opostos. Michael também demonstrou a sua preocupação quando implorava aos meus pais para que lhe deixassem passar a noite comigo, algo que ao início não era levemente aceite, mas mudou ao ver o bem que ele me fazia. Era bom poder estar com ele, especialmente para me aquecer em si na quietude da noite.

Estávamos a caminho da clínica. Infelizmente, não era Michael quem me acompanhava, mas sim os meus pais. Quando lhes foi mencionada a palavra "urgência", provavelmente pela sua sensibilidade à flor da pele, não demoraram nem um minuto para agarrar nas suas coisas e seguir viagem. O silêncio reinava entre nós, algo que normalmente me incomodava, mas não naquele dia. Lá fora nevava e sorri por isso mesmo e por já não esperarmos mais neve; parece que há sempre uma exceção à regra. Relativamente a mim, não esperei por nada, muito menos por uma exceção à regra; não esperei por uma mudança, por uma notícia positiva, por nada. Não estava orgulhosa do desânimo que me assolou durante dias sem fim, mas já não tinha as ferramentas para me esforçar em procurar por uma janela que ainda não se tivesse fechado. Recebidos pela formalidade e silêncio desconfortável da clínica, reparei que, ao contrário de mim, ambos estavam inquietos. A minha mãe amarrava e desamarrava o cabelo, comprava um café para depois queixar-se do quão quente estava e deitá-lo fora, já o meu pai parecia estar a ler o mesmo artigo do jornal por mais de vinte minutos.

— India? — ao ouvir a senhora de bata chamar por mim, ambos ficaram em sentinela. O meu pai ajudou-me a levantar da cadeira e a guiar-me até ao consultório com cheiro intenso a desinfetante; era aquele o cheiro de más notícias.

A médica estava sentada à nossa frente, tal como todos os últimos médicos, com um sorriso desrespeitoso nos seus lábios. Os meus pais não perceberam como aquele sorriso não era sinónimo algum de solidariedade; nunca foi e isso não mudaria.

— Como estamos hoje? — cortou o gelo instalado entre todos nós.

— Ansiosos, na verdade — explicou a minha mãe.

— Bom... — como todos os últimos discursos que ouvi, aquele iniciou com a mesma nota. — Temo que não trago boas notícias.

A pausa que decidiu impor num momento de suspense fez-me querer agredir-lhe e virar o consultório do avesso. A mão da minha mãe apertava o meu joelho com cada vez mais força, como se não tolerasse nem mais um minuto de espera, mas foi quando a médica prosseguiu que a sua mão relaxou, mesmo que não entendesse muito bem porquê. A sequência de palavras como leucemia, muito grave, linfática crónica, o meu nome e um pedido de desculpas adicional ecoaram pelo quarto. Ao contrário do que se esperou da minha parte, não reagi. Com a mesma expressão que entrei, foi com a mesma expressão que permaneci. Incrédulo, o meu pai procurou saber quão certa estava do diagnóstico, confrontando-a com a ridícula demora até termos uma resposta apropriada. Soltei um riso por ele a considerar apropriada. Os olhares dos restantes caíram sobre mim, estáticos pela minha capacidade de rir num momento como aquele, mas não pude contê-lo. As dúvidas, críticas e reclamações continuaram a ser tecidas, mas a mulher de bata branca voltou a insistir sobre como era difícil um diagnóstico em casos como aquele; era algo lento que demorava meses, mas que o resultado era confiável. Decidiu deixar-nos a sós por breves minutos e esse rfoi o momento mais silencioso do dia. Lágrimas caíram dos olhos da minha mãe que me abraçava intensamente e o meu pai escondeu a sua deceção ao olhar pela janela do consultório. Já eu sentia que estava num quarto escuro, abafado, sem nenhuma janela que pudesse abrir. Quando regressou, apresentou-nos várias possibilidades para tratamento.

— Não precisam de dar uma resposta agora, podem pensar sobre o assunto, mas o mais breve possível... — a médica procurou suavizar as suas palavras com murmúrios. — Têm mais alguma dúvida?

A minha mãe, face à minha apatia, clareou a sua garganta para questioná-la sobre o meu estado especial dos últimos dias:

— Ela tem vomitado ao longo dos últimos dias. Estará relacionado com... o que nos acabou de dizer?

— Sim, poderá estar associado — respondeu com os seus óculos de volta na ponta do nariz. — Podemos tentar excluir algumas opções por enquanto. Comeste algo estragado, India? — as suas palavras soaram distantes. Ela repetiu.

— Acho que não. Pelo menos não me lembro.

— E tens uma vida sexual ativa?

Quando proferiu tais palavras, olhei-a hesitante. Sabia perfeitamente qual era a resposta à sua pergunta, mas as outras duas pessoas ao meu lado não sabiam; havia um limite de notícias que alguém era humanamente capaz de receber num dia, por isso, neguei. Por fim, com mais algumas recomendações sobre os próximos passos a tomar dali em diante e com a reiteração de que apoio psicológico era "altamente recomendável" dada a minha reação e comportamento cuidadosamente analisado aos seus olhos, fomos dispensados. Tal como das últimas vezes, não senti que nada tivesse mudado; continuava doente, igual ao que estava quando lá entrei, só que agora com uma justificação mais séria e clara. A incerteza continuava a minha maior companheira.

Antes de me deitar, pedi à minha mãe que levasse o meu telemóvel para longe, não queria ver nem falar com ninguém. O meu remédio era retornar à solidão e esperar que, tal como antes, todos os meus sentimentos ficassem entorpecidos com o tempo.

— Desculpa, mas não te posso deixar entrar. Eu sei, mas agora só podemos respeitar a sua decisão.

Despertei ao ouvir a voz da minha mãe ressoar pelos corredores. Quando abri os meus olhos tive a confirmação que dormira durante mais tempo do que tencionava a julgar pela escuridão lá fora.

— Eu preciso de vê-la, Leah. Ela não me responde às mensagens e as chamadas vão todas parar à caixa de correio; ela precisa de mim também! Por favor, deixa-me entrar.

Meio adormecida, meio desperta, procurei perceber com quem a minha mãe falava já tão tarde, mas o meu coração apertou-se ao reconhecer a sua voz. Não estava preparada para lidar com ele, não logo e já. Não acreditei que fosse possível olhá-lo nos olhos sem sentir culpa e remorsos. Naquele momento só rezei para que a minha mãe fosse resistente o suficiente para não se deixar levar pela persuasão de Michael que, tal como o conhecia, possuía grau de mestre em convencer qualquer um. Tornei a deitar-me ao sentir o frio que não me abandonava.


Palavras para quê?

Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora