Revolta

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Michael

Revoltava-me estar ali. Sabia que estava porque queria e porque me recusava em deixá-la sozinha num momento como aquele. Só Deus sabia de todas as vezes que ela riscava dia após dia no calendário ou das vezes em que me ligava durante a noite apenas para falar porque não conseguia adormecer. Não precisei que me dissesse o porquê das noites em claro, muito menos o porquê do seu nervosismo; eu sentia-me da mesma forma. Não aceitava que não parecia melhorar. Houve dias em que as horas foram passadas em frente ao computador a tentar perceber e a estudar o que poderia estar de errado consigo. Li artigos atrás de artigos e até tentei criar o meu próprio diagnóstico, mas falhei redondamente.

Revoltava-me estar ali porque não queria que ela lá estivesse. Era difícil engolir que, por algum motivo, India pertencesse àquele sítio rodeada por pessoas assim tão doentes. Senti um breve arrepio percorrer a minha espinha pela simples ideia e decidi levantar-me, procurando por uma máquina de café. Coloquei as poucas moedas que tinha comigo e esperei que o café escorresse para o copo de cartão, mas senti-me ferver ao reparar que até havia algo de errado com a estúpida máquina.

— Merda, merda! — exasperei ao embater contra a mesma, mas logo recebi olhares reprovadores das senhoras de cabelos grisalhos da receção. — Peço desculpa.

Enchi os pulmões e voltei a sentar-me. Como conseguiam esperar todos tão pacientemente? Perguntei-me ao reparar como todos pareciam estar na maior, sem denunciar qualquer preocupação ou ansiedade que fosse. Inquieto, tornei a levantar-me.

— Vá lá... — murmurei ao encarar as portas automáticas por onde ela tinha entrado.

Cada momento passado em que India não aparecia era como se alguém estivesse a juntar gasolina ao fogo que era o meu medo de que me dissesse o que mais temia ouvir. Mas, como se os Céus me ouvissem, sosseguei ao vê-la correr na minha direção. Antes que pudesse dizer algo, fui surpreendido pelo seu abraço forte. Não resisti em tê-la perto, acabando por sentir algo quente contra a minha blusa.

— India! — chamei-a, preocupado pela espera pelas derradeiras notícias. — Vá lá, diz-me. O que aconteceu?

Lentamente, descolou-se do meu peito e vi a sua face avermelhada e húmida pelo choro. Com as minhas mãos, sequei-lhe as bochechas e procurei contagiar-lhe um sorriso, ao que ela correspondeu. Era uma tortura vê-la tão triste.

— Está tudo bem.

— O quê? O que acabaste de dizer?

Ela riu e segurou-me as mãos. — Está tudo bem.

Está tudo bem? Ela tinha mesmo acabado de me dizer que estava tudo bem?

— Então porque choras? — Puxei-a para mais um abraço apertado.

— São lágrimas de alívio.

Fechei os meus olhos ao ouvir a sua voz suave e inalei o aroma a maçã proveniente dos seus cabelos compridos, depositando um demorado beijo na sua têmpora. Ela está bem, repeti-me. Desta vez, ela está mesmo bem.

— Vamos sair daqui, então. Não aguento nem mais um minuto.

Estava tão grato por podermos finalmente sair, especialmente com notícias tão preciosas quanto aquela. India não merecia ouvir mais uma má notícia, mas sim todas as boas notícias que o mundo tinha para lhe dar. Ela merecia ter paz de espírito e que lhe tirassem de cima o peso que a consumia dia e noite, por dentro e por fora. Liguei finalmente o carro e deixei que a nossa banda favorita ocupasse o lugar do silêncio dentro da viatura, mas estranhei o seu comportamento. Sempre que as primeiras notas de Jersey soavam eram acompanhadas pelo seu riso de felicidade, mas ela deixou-se estar quieta.

— Estás bem? Não me pareces muito entusiasmada pelas notícias.
— Pareceu despertar de um pequeno transe, voltando-se para mim com um sorriso fraco.

— Desculpa, só estou um pouco esgotada. Demorou tanto tempo até que o dia chegasse e agora que chegou, ainda me parece irreal... só preciso de tempo.

— Claro. Então suponho que não estarias interessada em celebrar?

— Talvez noutro dia?

Obedeci-lhe quando me pediu para a deixar na sua casa. Tinha a expectativa de que as novidades pudessem aliviar o seu espírito e deixá-la mais alegre e leve. Permanecia calada, de cabeça encostada à janela a admirar a paisagem esbranquiçada lá fora. Resolvi que não ia adiantar de nada teimar com perguntas de por que e de porque não.

— Obrigada pela boleia e pela companhia hoje. Não sei o que teria sido de mim se não tivesses estado lá.

— Não sejas tonta. Não poderia estar noutro lugar que não ao teu lado — gracejei, reparando nas suas bochechas coradas.

Foi impossível não pensar como tudo em si era sinónimo de perfeição. Um arrepio percorreu-me quando se aproximou de mim lentamente até ter a sua respiração contra o meu rosto. Engoli em seco quando me apercebi como os seus olhos observavam-me atentamente, fixando-se nos meus lábios que, por sinal, já se encontravam sedentos por sentir os seus. Como se fosse a primeira vez, o meu coração bateu loucamente quando a sua mão fria acariciou o meu pescoço, unindo-nos num longo beijo. Os seus lábios gretados pelo frio moveram-se com os meus, como se soubessem o que fazer telepaticamente. Suspirei quando os seus dedos se entrelaçaram no meu cabelo e puxei-a para mais perto, recebendo um pequeno gemido da sua parte.

— Michael... — chamou-me, com uma mão sorrateira dentro do meu blusão. Rapidamente assustou-se quando a buzina do meu volante apitou. — Desculpa, eu... Eu não sei o que me deu.

Como poderia ela pedir desculpas?

Deixei-lhe mais um beijo nos lábios pálidos.

— Não precisas de te desculpar por isto. — Fitei os olhos cor de azeitona. Ela não fez o mesmo. — Nunca.

No meio de risos e de despedidas que pareciam nunca mais ter fim, a rapariga por quem estava perdidamente enamorado decidiu que precisava de descansar e de contar aos seus pais as boas novidades. Já eu podia finalmente voltar a casa livre de preocupações. Podia voltar a casa, deitar a minha cabeça na almofada ainda com o cheiro do seu champô e relaxar. Podia passar as restantes horas do dia a reviver o momento em que o seu beijo tinha-me tomado de surpresa. Sorri sozinho como um parvo; às vezes sentia vergonha por estar tão caído por ela. Não conseguia evitá-lo. Ela era tudo aquilo que sempre sonhara e que sempre desejara. Revirei os olhos ao aperceber-me do seu cachecol, que tinha ficado atrás, escondido num canto do meu quarto.

— Ela vai precisar disto amanhã, de certeza... — disse para mim mesmo, rindo-me sozinho mais uma vez pela sua cabeça distraída.

Apressei-me pelas escadas até ao frio da rua com a peça de lã vermelha nas minhas mãos, mas imediatamente senti-me preso ao chão pelo que vira.



Com amor,

Mukecakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora