Calum
Aquela era uma sensação familiar; lembro-me das escassas ocasiões em que até o sono era capaz de me trair com uma estranha paralisia; eram momentos tortuosos em que, apesar de consciente, era incapaz de mover um único dedo para conseguir defender-me do vulto que se aproximava de mim, pé ante pé, pronto para me atacar. Lembro-me do desespero, da inquietação e da impotência. Aquele foi um momento similar, onde a única diferença era que estava bem acordado, perfeitamente ciente de que o que se sucedeu foi real, mas que, ainda assim, foi impossível mantê-la por perto. Trancado dentro das confortáveis quatro paredes estavam só eu e os meus pensamentos. Naquela solidão pude rever a sua expressão de horror e de medo de mim; outra memória tão familiar. Ao pensar sobre isso, foi curioso ver o quão semelhantes eram através de um singular olhar. Ouvia os passos apressados de Malia lá fora no corredor e o seu tom de voz agitado ao telefone, provavelmente com os nossos pais.
— Já tentei falar com ele, mas é impossível. Ele não sai dali por nada no mundo.
Voltei-me na cama para poder encarar a cidade movimentada lá fora. Uma, duas, quatro, cinco pessoas. Duas delas traziam um grande saco de compras, outra falava alegremente ao telemóvel. Deixei-me observar a vida lá fora, houve instantes em que dei por mim a indagar como seriam as vidas de cada um lá fora; quiçá houve alguém que se divorciou (essa era a única explicação plausível para usar um penteado tão enfadonho); outro alguém estaria com pressa por ter uma família de quatro filhos e um marido exigente em casa à sua espera (talvez fossem jantar uma caçarola caseira, preparada com todo o carinho e atenção); se fosse essa a realidade, até eu estaria impaciente. Passaram-se três dias desde que recusei interagir com o mundo lá fora, não me importava de permanecer assim, sem ter de justificar ou explicar o que fosse a ninguém, mas tive uma ideia melhor.
Qualquer das maneiras, não havia mais nada que pudesse fazer. Já não havia motivação, necessidade ou até interesse em manter-me à tona; não havia sentido nisso. Levantei-me, rapidamente frustrado pela tontura que me assolou pelas longas horas sem Sol e sem qualquer comida para sossegar o meu estômago. Os meus pés descalços arrepiavam-se com o contacto do chão da casa-de-banho e encarei o meu reflexo. Nunca tinha reparado no quão comprido o meu cabelo estava nem no quão cerrada estava a minha barba. Ela tinha todos os motivos de sentir medo da minha pessoa porque até eu tinha medo de mim mesmo. Assustava-me o quão difícil começava a ser reconhecer-me nas pequenas pessoas. Pelo homem à minha frente sentia apenas escárnio e vergonha; ele era fraco, estúpido e incapaz de qualquer coisa boa, mas com uma enorme capacidade de algo mau. Assustava-me por não saber qual a minha genuína essência; será que era alguém capaz de mudança? Será que alguma vez tinha mudado sequer? Achei que a resposta era simples e tristemente evidente, pois não fiz nada todo aquele tempo para além de recalcar o meu verdadeiro eu.
Desculpa, mãe. Desculpa, pai. Desculpa, Malia.
Agarrei na máquina escondida e liguei-a, levando-a à minha cabeça. Fazia barulho, um estrondo até, quando o cabelo caía no chão; sempre foi tão pesado; era parte de um disfarce de quem tentei ser. Porém, estava na hora de encarar a minha dura realidade. No final, senti um grande alívio por voltar a ver uma cara familiar; com ele, sabia lidar e sabia o que esperar; com ele, não havia esforço nem frustração; com ele podia ser eu. Ao abrir a porta do meu quarto encontrei uma Malia sentada no corredor, que, ao atirar-me o seu olhar, consegui sentir a desilusão. Ela nada dizia para além de suspirar, negando com a sua cabeça pela imagem diante dos seus olhos; uma imagem que lhe trazia más recordações.
— Onde vais? — indagou aflita. — O que aconteceu, Calum? Fala comigo.
O seu semblante preocupado, a sua voz tremida e as lágrimas que escapavam por detrás dos seus óculos quase que me convenciam a abraçá-la e falar-lhe sobre os meus problemas e admitir que nada estava bem. No entanto, não conseguia fazê-lo. Virei-lhe as costas, procurando pelo meu cartão no meio da confusão desta casa.
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SICK. - 3 Caminhos Cruzados
Fanfic| História premiada por um Watty 2015 na categoria de Melhor Fanfiction | Primeiro volume da trilogia SICK. Na cidade chuvosa e melancólica de Fall River, três adolescentes estão prestes a ter suas vidas entrelaçadas de maneiras inesperadas. India...