India
As manhãs lá em casa sempre foram barulhentas e confusas, especialmente aos fins-de-semana. Já estava habituada ao meu próprio espaço naquela casa, livre para ligar a televisão quando quisesse e livre para mentir sobre mais um pequeno-almoço tomado. Contudo, com a presença astuta e vigilante da mulher ao fogão, encontrava-me numa das batalhas mais difíceis do dia: engolir o pequeno-almoço.
— Panquecas, a tua comida favorita — declarou com a espátula na mão.
Para que conste, não era típico de Leah preparar panquecas ou qualquer outra comida por si considerada "pouco saudável", mas naquele dia estava determinada em contornar esse pequeno detalhe. Aliás, foi capaz de arregaçar as mangas e de ignorar esse seu desapreço, satisfazendo os estômagos dos meus irmãos e torturando o meu. Panquecas eram, de facto, a minha comida favorita, sendo que foi por esse mesmo motivo que decidi que iria engolir cada pedaço seu encharcado com xarope de ácer.
— Se não quiseres mais, já sabes. — Will, sempre guloso, lambeu os lábios, impaciente.
Senti os olhos atentos da minha mãe à espera que me desfizesse da panqueca meia comida, por isso, redargui:
— Nem pensar. Esta é minha — brinquei.
— Eu e o teu pai marcámos a próxima consulta — a mulher de cabelos apanhados começou por dizer e, sem dar espaço para mais uma reclamação minha, continuou:
— E eu sei que não gostas de hospitais, mas não podemos deixá-lo passar, querida.
— Bom... — falei com a boca cheia, engolindo um gole de água. — Eu posso ir sozinha.
Tinha de ir sozinha. Ainda que não fosse a primeira vez, eu tinha de ir sozinha. Já tinha um plano meticulosamente engendrado sobre como iria aproveitar a consulta para perguntar quais eram as minhas opções. Relembrada do último desentendimento com Michael, conclui que ir sozinha não seria a melhor ideia; iria levá-lo comigo. Sim, é isso.
— Sozinha? Nem pensar.
Olhei para a mulher à minha frente, surpreendida pelo seu comentário. Limpou os dedos grudados de massa no avental e pousou uma mão na cintura, encarando-me séria.
— O teu pai disse e com muita razão: já chega destas viagens sozinha ao hospital. — Ajeitou os óculos na ponta do seu nariz. — Quis respeitar a tua vontade, mas está na altura de intervir-nos. Olha só para ti, a definhar cada vez mais.
Com aquela notícia engoli em seco. Como ia resolver este problema? Ocorreu-me novamente chamá-la para uma conversa secreta, longe dos ouvidos de todos, para lhe contar das últimas novidades. Fui consumida por uma esperança irracional de que, se lhe contasse tudo com o maior arrependimento, pudesse vir a sentir a sua compaixão, mas sacudi a cabeça mal imaginei as suas sobrancelhas unidas pela deceção. Ia encontrar outra solução. Cortei um último pedaço daquela maldita panqueca e engoli. Procurei abstrair-me dos pensamentos intrusivos que quase me convenceram em deitar fora o que tinha acabado de mastigar. A minha mãe apressou-se a desligar o fogão antes que a sua próxima panqueca queimasse.
— Vou até à casa do Michael — avisei ao engolir a última dose de comprimidos.
— Diz-lhe que, quando os seus pais voltarem, temos de combinar algo.
Tal como pediu, Michael aguardava-me na sua casa, desejoso de que lá fosse o mais rápido possível. Gostava de o ver tão feliz e entusiasmado com a presença de Luke que não o quis fazer esperar nem mais um minuto. Também estava curiosa. Não sabia que tipo de pessoa era nem qual era a sua aparência, embora algo me dissesse que, de acordo com o gene australiano, fosse igualmente alto como Michael. Antes de bater à porta aproveitei para verificar o meu aspeto no reflexo da porta. Ajeitei o gorro e belisquei as minhas bochechas, quis dar-lhes alguma vida e cor. Limpei a minha garganta e pratiquei um sorriso autêntico para que não fossem surpreendidos com um sorriso amarelo. Queria causar uma boa impressão. Depois dos quatro toques na campainha fui apanhada de surpresa com um rapaz alto e desconhecido à minha frente. De cabelos dourados e encaracolados, olhos de um azul berrante e pequenas sardas no seu rosto, sorri-lhe ao perceber quem era.
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SICK. - 3 Caminhos Cruzados
Fanfiction| História premiada por um Watty 2015 na categoria de Melhor Fanfiction | Primeiro volume da trilogia SICK. Na cidade chuvosa e melancólica de Fall River, três adolescentes estão prestes a ter suas vidas entrelaçadas de maneiras inesperadas. India...