Tesouras e longos suspiros

272 29 5
                                    

India

Não reconhecia a pessoa diante de mim. Havia algo de familiar no seu rosto e na maneira como forçava um sorriso, mas para além disso, não havia mais nada.

Abri a torneira e deixei que a água fria se acumulasse nas palmas das minhas mãos. Esta vertia pelas extremidades dos meus dedos e apressei-me a levá-la até à minha cara. Repeti esse processo vezes sem conta, acabando por voltar a encará-la; aquela pessoa no espelho que não significava nada para mim. Os seus olhos esverdeados estavam mais escuros do que o habitual; estavam baços, também. Não havia vestígio algum do brilho que outrora os decorava, sendo que ao invés de alegria, só observava cansaço e uma tremenda quantidade de insatisfação. A sua pele, mais pálida do que costume, não tinha qualquer contraste com a idêntica palidez dos seus lábios, que outrora possuíam um tom rosado; lábios esses que não conseguiam transformar a já entranhada linha horizontal numa linha curva. Suspirei e coloquei um pouco de batom. Valia a pena tentar, pensei para mim. Soltei o meu cabelo do gancho que o segurava e olhei-o por uma última vez. Ao contrário do cabelo farto e suave que antes balançava a cada passo que dava, estava irreconhecível. Era feio, fino, quase inexistente. Engoli em seco pelo reparo e tentei conter as minhas lágrimas ao reparar na quantidade de fios que caíam com o toque da escova. Não eram lágrimas de tristeza, mas de raiva. Sentia que a infelicidade que já me era tão familiar começava a ser substituída por uma revolta imensa e, para variar, decidi que estava na altura certa para que essa emoção me consumisse por completo. Eu estava chateada e não queria continuar a fingir que tudo estava 'sob controlo'. Chegava a ser cansativo pensar dessa forma.

Fui desperta dos meus pensamentos pela mensagem que brilhava no ecrã do meu telemóvel e não pude deixar de sentir um alívio por ver o nome 'Michael'. Estava a avisar-me que me aguardava dentro do seu carro.

— Obrigada por esperares por mim.

Michael inclinou-se, afagou o meu rosto, descendo gentilmente para o meu pescoço. A sua respiração estava calma e perigosamente mais perto. Os seus lábios suaves descansaram sobre os meus e, com um toque tão simples quanto esse, o meu coração esqueceu quaisquer limites. Fechei os olhos, desejando guardar a sensação que era um beijo seu.

— Como estás? — Escondi um sorriso tímido.

— Tenho de me habituar a isto.

— É difícil conter-me. Acredites ou não, anseio todos os dias pelo momento em que voltarei a beijar-te.

Era o dia em que ia cortar o meu cabelo. Tornou-se impossível não ouvir a voz do homem de batina branca a sugerir o que seria melhor para mim, tendo em conta as circunstâncias. Era uma sensação agridoce.

— Não fiques nervosa. Vai correr tudo bem.

A sua mão acariciou a minha coxa, transmitindo-me um pouco da sua calma. Anuí, procurando interiorizar as suas palavras e capacitar-me de que tudo era temporário. Ele voltaria a crescer, afirmei-me.

— Obrigada por vires comigo. Contigo é mais fácil.

As minhas palavras pareceram afagar-lhe o ego, mas ele apenas sorriu em silêncio deixou-me mais um beijo.

— Boa tarde. — A senhora simpática de cabelos escuros sorriu-nos. — India, certo?

Confirmei, procurando por um sorriso ou uma simples palavra para lhe oferecer, mas sem efeito. Michael, como se conseguisse ler os meus pensamentos, rodeou a minha cintura com o seu braço.

— Quando quiseres, podes sentar-te naquela cadeira ao fundo. Eu vou preparar tudo e já falamos.

Voltei a abanar a minha cabeça, ainda que em silêncio. À minha frente, o seu semblante sério e preocupado analisava-me atentamente. Era um

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora