Desnorteamento

302 20 11
                                    

Calum

— Despacha-te! Os clientes não se vão atender sozinhos.

— Sim, sim... só tenho duas mãos, Jeff.

Era difícil puxar o pesado saco do lixo fora do contentor. Para ajudar, as minhas mãos estavam escorregadias pela manteiga e o meu corpo traumatizado pelo incidente da última vez que tinha tentado vencer o teimoso saco.

Tal como o costume, era preciso deitar o lixo fora e, como eu era o mais recente ajudante, cabia-me a nobre tarefa de deitar os malcheirosos restos fora antes que o camião do lixo passasse. Tal como também era o costume, o saco esverdeado era demasiado pesado. Tentei várias vezes e diferentes ângulos, apesar do estalar de dedos incessante de Jeff, mas era uma tarefa curiosamente complicada. Contudo, foi quando achei ter conseguido que olhei à minha volta para ver que os ovos estragados estavam em cima de mim e que o leite azedo estava respingado por todos os lados.

Posto isso, não tencionava que tal voltasse a acontecer. Ademais, tinha uma maior motivação para me manter apresentável e livre de lixo: finalmente tinha-me sido concedido o posto ao balcão. Não pude estar mais entusiasmado por finalmente deixar as loiças manchadas e dedicar-me a novos sorrisos e a felizes saudações; surpreendeu-me o quão satisfeito fiquei por poder explicar-lhes cada doce detalhadamente, sempre com boas recomendações sobre qual folhado escolher.

— Hood...

Antes que a voz maçuda do velho superior me enervasse, empurrei a pesada porta de vidro para longe com o saco de arrasto. A minha vista, já tão habituada à baixa luminosidade do café estremeceu com a luz forte e clara do Sol pelas nuvens; estranhei esse mesmo aspeto. Já não via nuvens cinzentas a aprisionar o Sol há tanto tempo. Dei graças por ver que o camião ainda não tinha passado e, a grande custo, finalmente atirei o lixo. Sacudi as mãos, pronto para voltar, mas houve algo naquele tempo escuro que me manteve lá fora: foi complicado perceber se fora a saudade de uma brisa mais agressiva ou se fora pelas más recordações que tendiam em assombrar-me deliberadamente.

— Chega, Calum. Passado é passado — procurei convencer-me.

Ninguém poderá saber o quão desafiador foi nos primeiros meses seguir aquele caminho e trabalhar atrás daquele mesmo balcão: houve momentos em que me via e a India do outro lado com café e chá fumegantes nas mãos. No entanto, tudo isso era passado e estava determinado a acreditar nisso, ainda que o passado parecesse perseguir-me. Naquele instante, no meio da estrada deserta, a minha mente tornou a brincar comigo; quase jurei ter visto o seu carro com ela à janela dos bancos de trás.

Não, isso é impossível, pensei. Como poderia estar eu ali, a vê-la, quando ela se encontrava a milhas de distância de mim?

Sacudi a cabeça, decidido a não deixar que ela me possuísse como sempre o fazia. Assim, foquei a minha atenção na longa fila de clientes e colei o habitual sorriso na minha cara, pronto para continuar o meu trabalho.



Margaret ajeitava as suas roupas dentro do armário. Ela sempre aproveitava momentos como aquele para me inteirar de todos os bons mexericos do seu trabalho; começava por dizer que o dia tinha sido tranquilo, mas o curso da conversa depressa denunciou que, afinal, não suportava as suas colegas e que já não queria passar os seus dias a virar hambúrgueres nem a servir às mesas de pessoas com uma vida melhor que a sua. Tratava-se de monólogos. Não foi como se eu não pudesse ter dito alguma coisa, especialmente se fosse para atirar mais lenha para a sua fogueira de insatisfação — ela adorava quando o fazia — mas deixei-a falar sem parar; ouvi-la ajudava-me a distrair do estranho e tenebroso momento daquela tarde.

Estaria eu a perder o juízo? Estaria eu de volta às linhas loucas que me cosiam?

— O que se passa? Estás tão calado... — Como sempre, a sua perspicácia levou-me a melhor. — Aconteceu algo no trabalho?

— Oh, não. — respondi sem pensar. — Nada de especial, pelo menos. Consegui tirar o saco do lixo sozinho, desta vez.

— A sério? — O seu semblante mostrou-me divertimento e enjoo.
— O velho Jeff está a tratar-te bem?

A minha vontade era desabafar consigo. Não me apetecia falar sobre o meu trabalho nem ouvir falar sobre como a sua colega não tinha lavado bem as frigideiras. Não me apetecia continuar a fingir que tudo estava bem, especialmente depois de termos decidido que não voltaríamos a cometer o mesmo erro.

— Maggie — chamei-a. Os seus olhos deixaram as blusas amarrotadas e voltou-se para mim. — Soubeste de alguma coisa ultimamente? Eu vi algo muito estranho hoje à tarde.

Pude jurar ter visto uma mudança no seu corpo. Atirou as roupas outrora cuidadosamente dobradas para longe, batendo com os pés até à porta. Aquela mudança brusca de comportamento só pôde significar duas coisas: ou sabia do que falava ou estava impressionantemente apressada para a casa-de-banho. Contudo, os seus olhos chorosos confirmaram-me a primeira suspeita.

— Maggie... — disse. — Por que choras?

Ela fungou, limpou as lágrimas na sua manga e abanou a cabeça várias vezes.

— Tudo estava tão bem entre nós que não tive como dizer-te. — O seu pranto amoleceu a minha ânsia. — Então como vai ser? Vais voltar a correr para ela?

Aquela rapariga, que sempre punha uma fachada forte e resiliente, sempre ia abaixo com estas questões insignificantes. Trouxe-a para um abraço apertado, quis confortá-la e dizer-lhe que não havia espaço para mais ninguém no meu coração agora que ela lá estava. Sabia o quão feliz era ao seu lado e queria que ela também o soubesse; não me atreveria nem a pensar em deixá-la para perseguir um fantasma.


Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora