Ilusões

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Calum

India dormia profundamente ao meu lado. O filme continuava a tocar e, sem querer perturbá-la, abandonei a cama o mais silenciosamente que consegui. Depois de toda a água que bebemos e de todo o café bebido antes da água, era urgente ir até à casa de banho. Lá, encontrei toda a sua roupa desarrumada pelas senhoras da limpeza que sempre lá apareciam pela manhã; sabia o quanto gostava de ter tudo em ordem, por isso, dobrei cada peça cuidadosamente numa pilha. O meu telemóvel vibrou, pude reparar que Maggie me ligava; queria perguntar quando voltaria para casa, mas não tinha tempo para lhe responder; India precisava mais de mim do que qualquer outra pessoa e era a minha tarefa estar lá para ela. Não queria deixá-la desamparada como ele a tinha deixado.

Pesada pelos medicamentos e pela dificuldade que era só estar consciente, India dormia imenso e, durante os breves, porém recorrentes períodos de sono, o seu nome era por ela murmurado; chamava por ele de sobrancelha cerrada e com amargura na voz. Em alturas como essa, tudo o que podia fazer era afagar o seu rosto magro. Aí, sim, paravam os lamentos. Sabia que eu não estava ali para substituir Michael, não era algo que sequer passasse pela sua mente; sabia que era por ele que ela ansiava. Todas as minhas falhadas tentativas em abordar o tema eram interrompidas com uma cara comprida e dois braços cruzados. Afinal de tudo, era boa a sua ausência. Não sabia apontar ao certo qual seria o resultado se ele voltasse para a sua vida; acreditei que tudo culminasse num choque de emoções fortes ou então em mim, atirado de volta para o fosso da inutilidade e da irrelevância. Admito que não queria que tal se sucedesse.

Em frente ao espelho estava eu e o meu semblante cansado. Todas as manhãs eram passadas ao seu lado, a prestar-lhe companhia enquanto os seus pais visitavam o máximo que podiam. De noite, entrava sorrateiramente no café de Jeff, pronto para deixar mais uma dezena de tabuleiros prontos de bolachas e bolos a serem cozidos no dia seguinte; tinha sido esse o nosso acordo. Ao final, o dinheiro continuava a ser importante, mesmo que andasse a competir com India. Passei a água fria no meu rosto, ajudava-me a aclarar as ideias, de seguida saquei dos comprimidos amarelos do meu bolso. Engoli um.

No corredor lá fora estranhei a súbita agitação. Estes gritos vão acordá-la, pensei. Sacudi a cabeça por não conseguirem manter a ordem entre os pacientes. Depois de secar a minha cara e de ajeitar as restantes peças de roupa, apressei-me a ir ao seu encontro; não gostava quando India acordava sozinha, sem ninguém ao seu lado. Depois de ajeitar o meu cabelo, abri a porta, quando fui surpreendido pela presença de alguém que não os típicos visitantes. Ainda que estivesse de costas, não restavam dúvidas sobre quem era: o cabelo desgrenhado e colorido denunciaram-no. Voltou-se para mim, os seus olhos molhados logo tomaram uma expressão desagradável, séria e fria. Pude jurar ter visto o seu cabelo eriçado pela minha presença.

— O que estás aqui a fazer? — foram as suas ousadas palavras. Primeiro quis rir, depois vi o nervosismo estampado no rosto de India.

— Engraçado — comecei por dizer. — Ia perguntar-te exatamente o mesmo.

Michael estava pronto para levantar-se, secar a cara e preparar-se para empurrar-me dali para fora, ou até cuspir-me palavras que só eu tinha a moralidade para o fazer. A sua audácia surpreendeu-me quando deu três passos na minha direção, pronto para me afrontar, mas foi a sua vez de se surpreender quando dei um passo na sua direção.

— Não comecem, por favor. — India suplicou.

O meu sangue fervia pela sua insensibilidade. Era preciso ter lata; mesmo que soubesse que a tinha em demasia, naquele momento excedeu as minhas expectativas. Quem é que ele achava que era? Que direito tinha ele de chegar, deitar três ou quatro lágrimas e aproveitar-se da sua vulnerabilidade?

— Estarei lá fora — aquelas palavras foram ditas com um respingo de advertência para o caso de pensar sequer em contrariar-me.

Tenso, deixei o quarto à espera de que Michael me seguisse. Massajei a minha cabeça, ainda perplexo pelo súbito regresso. De onde é que ele tinha vindo sequer? Porquê agora quando tudo estava como sempre deveria ter estado? Respirei fundo. Tinha de manter a calma, impensável seria dar mais um motivo de preocupação a India. Os pacientes agarrados ao soro davam as mesmas voltas de sempre ao longo dos corredores, enfermeiros estavam demasiado ocupados para notar a minha apreensão e raiva que ameaçava chegar. Tornei a respirar fundo quando ouvi os seus passos na minha direção. Ainda sério e de maxilar cerrado, plantou-se diante de mim com os braços cruzados. Foi a minha deixa.

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora