Velhos hábitos

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Calum

O silêncio do quarto foi permutado pelo seu riso estridente. Reparei até que pequenas lágrimas divertidas apareceram no canto do seu olho, as quais secou cuidadosamente; era inimaginável desbotar a maquilhagem tão cuidadosamente desenhada. Deixei-me observá-la. Era um novo hábito meu.

— Nem consigo imaginar a cara dela. — Agarrou a sua barriga.

Mesmo que já não conseguisse manter a sua respiração, estava determinada em encontrar novos motivos para rir. Ainda que me reservasse na minha réstia de consciência, era uma tarefa difícil não ser contagiado pelas notas agudas da sua risada. O seu nariz enrugou-se e as sobrancelhas arquearam-se, já para não mencionar as pequenas covas no seu rosto que se afundavam cada vez mais com um grito divertido. Sem resistir, juntei-me a ela.

Desde que Malia me atormentara com a decisão tomada por todos à exceção de mim, não vi outra alternativa. Depois de lhe fazer ver que não fazia qualquer sentido me enviar de volta para casa, consentiu em deixar-me viver com Maggie. É óbvio que, no instante em que concordou, avisou-me com um indicador hirto que lavava as suas mãos de qualquer problema a mim associado. Ainda que incomodado com a sua impertinência e desinteresse, não pude acreditar nas suas palavras. Não era como se viesse a precisar, mas caso o cenário escurecesse, sabia que ela jamais me iria renegar; pelo menos assim gostava de pensar.

A mudança não foi de todo harmoniosa. Margaret Brown tinha as suas peculiaridades e Calum Hood as suas; ela tinha o seu espaço contado ao centímetro e eu, com a minha escassa tralha, tive de me contentar com o pequeno canto do armário que me concedeu a grande custo. Na primeira noite tudo pareceu promissor. Acompanhados por beijos loucos e apertos irrequietos, cheguei até a pensar que poderia viver assim para todo o sempre, mas, com o tempo e com a convivência, os dias sombrios e chuvosos também chegaram ao nosso ninho. Com o tempo rapidamente percebi as notas complexas e manhosas da sua pessoa, desde à sua escassa honestidade até à sua voraz duplicidade. Ao fim de todos os momentos em que me tinha feito ver que a sua mente era tão conturbada quanto a minha, não esperei por nada que não aquilo. Era por isso que funcionávamos tão bem. Maggie era uma mulher muito pensativa que pensava em várias coisas bonitas também. No entanto, surpreendi-me pela quantidade de esquemas que conseguia engendrar.

— Se ela te magoou, eu vou ajudar-te a magoá-la de volta.

Na altura não pude nem imaginar que estivesse a falar a sério. Pareceu-me ser só mais uma das suas conversas rotas, pois jamais esperei que pegasse numa das fotografias e que a espetasse na porta da sua casa. Naquela noite fui uma marioneta nas suas mãos. Maggie ordenara com clareza e confiança que esperasse por ela ao fundo da rua, protegido pela sombra do beco. Acatei tudo o que me dissera enquanto a vi tocar à campainha e a correr até mim, ofegante pela adrenalina que cobria o seu sistema que também me encheu por completo. Era algo novo, entusiasmante e aliciante. Ela era assim: puramente viciante.

— Não devíamos estar a rir, muito menos tu.

Naquele instante, um raio de bom senso atingiu-me. Ultimamente eram raros, bastante até, o que tendia a preocupar-me. A rapariga de olhos borrados voltou-se para mim. Ainda que não a mirasse, sabia que os seus olhos analisavam cuidadosamente o meu corpo despido a procurar pelas minhas roupas no meio da confusão.

—Não te entendo. — Ouvi o som do isqueiro, depois senti o cheiro. — Numa hora estás bem, divertido... No minuto seguinte nem te reconheço.

Puxei as calças e fechei o casaco no meu peito. Limpei a minha garganta antes de lhe dizer:

— Vou sair. Vemo-nos mais tarde.

Estar na sua companhia era agradável e refrescante quando a minha mente não me traía como sempre gostava de fazer. Era agradável por não ter de pôr uma máscara na sua companhia, cheguei até a pensar que, se almas gémeas existem, ela seria a minha. Tudo era bom, mas havia certas coisas difíceis de se mudar e uma delas era o meu coração. Ainda que estivesse mais longe de si, não conseguia apagá-la da minha vida; se assim tentasse, ela sempre regressava sob as formas mais absurdas que alguém poderia imaginar. Bastava olhar para o Sol que raiava por entre as nuvens que me lembrava dos bons momentos e do seu sorriso, ou então a chuva.

Maggie sabia para onde me dirigia naquele exato momento. Com o capuz na cabeça e os olhos presos no chão, caminhava até ao mesmo sítio de sempre: o café. Ao fim de dias que pareciam pertencer a uma infinidade breve de horas, foi-me negada a possibilidade de voltar a ver o seu rosto. Entendia porque ela hesitava sair de casa, especialmente sozinha; apesar de louco, não era estúpido. Ela estava com medo pelas ideias sombrias de um alguém desconhecido e pela minha incapacidade de parar; ser uma contradição ambulante era parte de quem eu era.

Apesar de tudo isso, lá estava eu, agachado atrás do caixote do lixo, a aguardar pelo minuto em que India ira pedir o seu chá quente e o seu bolo preferido para depois voltar a seguir até casa, deixando um rasto do seu perfume. Tornei a verificar as horas que me informaram que, num dia comum, ela estaria prestes a chegar. Não contava vê-la, mas havia algo em seguir estes pequenos costumes que me ofereciam a sensação de proximidade; uma efémera reminiscência. Reconheci um som familiar. Estava distante, mas era inegável que lhe pertencia. Se havia algo facilmente reconhecível era o seu andar: os seus pés arrastavam a sola dos sapatos já gastos ao mesmo tempo que batiam no pavimento, causando um curto eco. Naquele dia arrastou-os com uma maior intensidade. Reparei que estava mais magra do que a última vez. Ao vê-la assim, dei por mim a recordar os dias em que as suas coxas enchiam as calças de ganga e o seu decote espreitava descuidadamente pela blusa.

Tudo nela sempre foi tentador.


Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora