Plano B

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Calum

— A escola voltou a ligar-me — Malia avisou do outro lado da linha.

Soprei pela sua inconveniência. Já era a quarta vez que me ligara numa semana, sempre pronta para deixar claro o quão irritada estava comigo por não comparecer nas aulas. Estas pequenas discussões, as quais gostava de titular como "importantes para o meu futuro eu", já eram muito previsíveis para estar interessado, sequer. Começava por dizer que a escola estava preocupada pela minha ausência recorrente e que era imperativo cumprir um papel de aluno dedicado. Aproveitava essa deixa para me ameaçar sobre como teria de deixar o apartamento de Maggie e regressar para a casa dos meus pais. Aí, quando o seu nível era tão baixo, não via outra alternativa senão desligar a chamada. Não havia nada que a escola me pudesse trazer para além de cansaço e desgaste. Para além disso, eu comparecia na escola, mas eram as aulas que dificultavam tudo. Eu até estava na escola todos os dias já que o futebol era um novo mecanismo de libertação.

— Hood! Aqui! — Jack gritava pelo campo.

Passei-lhe a bola, correndo pelo relvado o mais rápido possível até conseguir marcar um último ponto na baliza adversária. Ali, a correr, senti-me livre de pensamentos. Canalizava todas as frustrações e vozes intrusivas na minha mente para a bola, podia até atirá-la para bem longe. Isso ajudava-me a lidar melhor com as situações em que a minha mente me empurrava para contrariar a minha própria vontade.

Em casa, longe desse ambiente, ponderei em aparecer no treino naquela tarde. Sabia que o treinador não ia ficar contente se faltasse a mais um treino e, se fosse esse o caso, não ia hesitar em sugerir que abandonasse a equipa. Isso também não podia acontecer. Aquela equipa, apesar da idiotice estampada em todos seus membros, foi o que me abriu as portas para a humilde sociedade de Fall River. Foi graças a essa equipa que tive a sorte de encontrar Margaret. O meu corpo refletido no espelho mostrou-me leves vestígios seus; manchas escarlates esbatidas ao longo da minha clavícula e no meu abdómen. Sorri pelas memórias quentes da noite anterior.

Por breves segundos, o homem ao espelho era alguém invejável. Era grande, forte e musculado; desejado por alguém tão popular e invejado por outros. Gostava dessa confiança espelhada, mesmo que essa fosse uma ínfima parte sua. Mais acima, longe da confiança e do corpo cobiçado, estava eu. Eu, de quem pensei poder escapar se anulasse tudo o que pertencia a um eu passado, mas que rápido entendi a natureza imutável. O meu reflexo era, afinal, distorcido.

Maggie tinha saído, disse que ia ajudar nos preparativos para a festa em casa de Jack. Ora, antes abrir a gaveta trancada, olhei em meu redor; quis certificar-me de que não havia nenhum ouvido colado à porta ou um par de olhos curiosos à espreita. Seguro de que não havia ninguém, abri a gaveta. De lá tirei um pequeno molhe de fotografias, todas elas cuidadosamente organizadas e seguras por um elástico. Sorri ao vê-la ali. O seu cenho estava franzido e as suas mãos estavam no ar, sinal claro de que ria durante uma conversa; o seu cabelo estava comprido, caía descuidadamente pelo gorro. Noutra fotografia encontrei-a a puxar o seu blusão pela cabeça. Esse foi um dia inesquecível: tinha decidido dar uma pequena volta pelo recinto da escola e foi quando avistei a sua turma no relvado da escola. Praticavam pequenos exercícios de flexibilidade e, sem nada melhor para fazer e incapaz de me negar o prazer que era observá-la, deixei-me ficar ali perto. Não tinha qualquer entusiasmo pessoal pela flexibilidade, ainda menos feito por outras pessoas, mas ela... ela tornava-o interessante, cativante. Era impossível desviar os olhos de si por um mero segundo. O seu cabelo estava apanhado e alguns fios estavam colados à sua testa pelo suor. Achei ousado, rebelde até, estar ali coberta por um pequeno sutiã desportivo e umas leggings devassas que se colavam às suas pernas. Foi exatamente quando procurou pelo seu blusão que captei a fotografia; era alucinante não tornar a vê-la daquele jeito. Na próxima fotografia estava ele, o rapaz cujo nome desencadeava em mim uma violência inexplicável.

— É uma pena teres escolhido a pessoa errada... — aquelas palavras saíram-me num sussurro ao encontrar uma outra foto sua. Desejei controlar o aglomerado de lágrimas só para mim. — Agora vê. Vê só o que me obrigas a fazer.

Acudi uma lágrima antes que caísse sobre a foto. Não gostava de ser obrigado a tomar certas decisões, porém era apenas justo seguir com o meu plano até ao fim. Agarrei nas chaves de casa e fechei o casaco a caminho da sua casa. Na noite passada tinha decidido que era o melhor a fazer.

— Deve haver algo que os afaste um do outro — Maggie disse ontem à noite, deitada ao meu lado na cama. Bocejava pelas altas horas. — Só temos de o descobrir.

— Por que queres fazer desta situação algo nosso? — os seus dedos acariciavam o meu cabelo. — O que ganhas com isto?

Maggie sorriu. Daquela vez pude notar um sorriso diferente, sem qualquer malícia ou divertimento. Daquela vez era um sorriso verdadeiro, quente e doce, quase envergonhado. Escondeu a sua cabeça no meu peito descoberto e disse:

— Ora, é simples. — Deu de ombros. — Ganho-te a ti.

A surpresa pelas suas palavras foi imensa, mais do que possa expressar. Explicou-me que, se eu conseguisse ter a minha mente finalmente livre do fantasma de India, poderia finalmente concentrar-me em si. Ela tinha razão. Apesar de tudo, estava grato por Maggie. Nunca tinha pensado em encontrar alguém que não só gostasse de mim por quem sou verdadeiramente, mas que também fosse como eu. Naquela noite instruiu-me para que o fizesse quando ninguém estivesse por casa, talvez quando estivesse na escola, assim teria todo o tempo do mundo. Explicou-me que, para tal, era necessário um alicate. Quando lhe perguntei como sabia todos os detalhes e técnicas precisas, encolheu os ombros e ofereceu-me uma resposta insaciável.

Sem grande demora, avistei o bairro ao fundo da rua e apressei-me até a sua casa, onde tive a agradável confirmação de que tinha deixado o carro para trás. Com a certeza de que ninguém se atreveria a passar pelas ruas desertas e geladas, aligeirei-me por debaixo do carro, relembrando-me de todos os passos necessários para executar a tarefa. Decidi que era a melhor solução para o meu problema pela simples e clara lógica: se um rumor sobre traição não os abalara, então teria de tomar uma decisão mais drástica. Se ele não lhe ia deixar por nada no mundo, eu tinha de intervir. Eu tinha de a obrigar a ficar sozinha e, tal como fez comigo, não tencionei dar-lhe qualquer escolha. Quando encontrei os cabos, cortei-os, mas praguejei quando ouvi uns passos na minha direção.

— Ei! — uma voz desconhecida soou. Merda. — Quem és tu e que raio estás aqui a fazer?!

Quando me arrastei para fora do carro, encontrei um rapaz estranho que trazia consigo uma expressão pouco amigável. Encurralado e sem saber como sair ileso, desatei numa correria.


Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora