Luzes brancas desconfortáveis

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India

O dia tinha amanhecido com um sol corajoso por entre as nuvens. Afastei as cortinas, deixando que a luz considerada rara nos últimos tempos entrasse no meu quarto, aquecendo-me. Sorri por isso. Senti um pequeno arrepio quando consegui ver através da janela o Michael, ainda com a sua roupa de dormir, a ver a sua correspondência. Ele analisava carta por carta, soltando um longo bocejo. Ainda não conseguia acreditar que a tarde de ontem tinha realmente acontecido.

Depois de ter cometido tal loucura, afastei-me. Não sabia o que tinha acontecido, nem como tinha encontrado a audácia para tal. Tentei culpar o beijo no meu estado emocional fragilizado, mesmo que o meu coração me dissesse o contrário. Sentada de costas para si, a sua mão procurou pela minha.

— Está tudo bem? — Estava confuso pela minha atitude.

— Desculpa, eu não quis invadir o teu espaço e...

— India, a última coisa que tens de fazer é pedir desculpa
— Michael gargalhou. — Se não tivesses sido tu a tomar a iniciativa, teria sido eu.

Perante as suas palavras ousadas, encarei-o. Um riso voltou a ser ouvido, sentando-se ao meu lado. Analisei cada movimento seu com cuidado, a tentar prever o que poderia vir a seguir. O seu rosto girou para o meu e a sua mão levou a minha boca para junto da sua, mais uma vez. Tentei manter a calma pelo sucedido, sem conseguir deixar de sentir as minhas mãos húmidas pelo nervosismo. Os seus lábios tentavam acompanhar a lentidão dos meus e estremeci por completo ao sentir a sua língua suave. Com mais um simples beijo, ele afastou-se, encarando-me com um sorriso estampado.

— Não fazes ideia de há quanto tempo eu queria fazer isto.

Sorri pela quente memória, ainda incrédula que tudo não fora um sonho. Apesar de feliz, sabia que teria de lhe confrontar com o que acontecera; não ia descansar sem antes saber se aquele beijo fora autêntico.

Decidi que tinha de me despachar se queria apanhar o autocarro a horas. Contra tudo aquilo que idealizava, os meus pais acabaram por ser contactados pela escola a contar-lhes o que se tinha passado e durante o jantar tivemos uma conversa séria sobre regressar ao hospital; Leah insistiu em acompanhar-me, mas consegui persuadi-la. É claro que a ideia de ter companhia e apoio foi tentadora, mas preferi estar sozinha e lidar com tudo à minha maneira e ao meu ritmo. A viagem de autocarro não era das minhas favoritas, especialmente pela sua demora até ao hospital, mas usei a lentidão a meu favor. Aproveitei para me manter calma e para preparar um simples discurso sobre o que dizer à médica; não queria esquecer nenhum detalhe importante sobre o que se tinha passado nos últimos meses.

Já familiarizada, fiz o meu caminho até ao balcão, informando que tinha uma marcação com a médica Cathy Smith. Após ser indicada para aguardar, sentei-me. Apesar de acostumada, sabia que nunca ia conseguir, de facto, habituar-me ao sítio escuro com cheiro a desinfetante e doença. As luzes brancas eram fracas e conferiam a este espaço uma conotação muito mais desconfortável, sem mencionar a quantidade de pessoas deitadas em macas que eram guiadas por batalhões de enfermeiras. Arrepiava-me sempre.

A espera matava-me por dentro, como sempre quando me encontrava sentada naquela cadeira. Sempre que sentia a aproximação de alguém, desviava o meu olhar dos jornais desatualizados à disposição, na expectativa de encontrar a mulher de cabelos ruivos e bata branca, até que o meu nome foi finalmente chamado. Respirei fundo, levantando-me com calma, e voltei a repetir aquilo que precisava de ser dito. Queria causar boa impressão. Bati à porta antes de entrar, recebendo um sorriso atarefado da médica familiar que andava de um lado para o outro no consultório.

— India, entra! — pediu-me, estranhamente energética para uma médica às nove da manhã. — Bom dia, India. Estou surpreendida por te ver aqui de novo.

— Então, — Arranjou os seus óculos na ponta do nariz. — A que devemos esta consulta?

— Eu... Eu vim porque acho que a medicação não está a funcionar.

Como resposta, recebi a sua cara confusa. Depressa procurou entre os papéis na sua secretária por algo que não consegui perceber, escrevendo algo no computador. Ainda a encarar o ecrã, questionou:

— O que queres dizer com isso?

Inspirei fundo para que a minha voz não saísse trémula como sabia que sairia. Tratei de lhe explicar tudo o que tinha acontecido nos últimos tempos, com especial atenção ao que aconteceu no dia anterior na escola.

— Pensei que, por este andar, as coisas já estariam mais equilibradas...

Depois de ouvir atentamente tudo o que lhe tinha a contar, deu-me mais um sorriso, embora não tão entusiasmado como dantes. Em vez disso, pediu-me para que lhe seguisse até ao laboratório.

— Está tudo bem, India. Não precisas de ficar preocupada — tentou um gesto tranquilizador. — Vou pedir que esperes aqui até que a enfermeira te chame. Vamos fazer umas análises, nada de mais.

Observei como o seu rabo de cavalo abanava à medida que esta andava de um lado para o outro, a falar com a quem supus ser a enfermeira. Era necessário que os resultados da análise saíssem e aí, sim, a médica explicar-me-ia tudo. Sentei-me outra vez na mesma cadeira debaixo das mesmas luzes, ouvindo o meu telemóvel vibrar dentro da mala. Não esperei ver o nome de Calum no ecrã, mas tive de recusar a chamada; não era uma altura conveniente.

O que será que Calum queria? Estaria à procura de companhia?

Repreendi-me por não lhe ter confrontado com a sua atitude na festa e por não lhe ter perguntado como descobrira a minha morada.

Daquela vez, ela parecia mais séria e assente na Terra do que antes. Tentei desviar os maus presságios que poderiam advir da sua postura, focando-me apenas no que ela tinha para dizer. Na sua mão estava uma folha e na outra, uma caneta.

— E então? — perguntei, impaciente pelo tempo de espera.

— As notícias não são muito animadoras, mas não é nada de alarmante. Ao que parece, a hemoglobina desceu mais dois valores, e, como não tínhamos feito referência à ferritina da última vez, vimos que está em níveis demasiado baixos. — O meu cérebro tentou acompanhar o seu discurso. — Neste momento tens 3%, sendo o ideal entre 20 a 50%. Agora, tens feito a medicação corretamente, certo?

— Sim, exatamente como me disse. Podemos mudar a medicação?

— Tens de continuar a fazê-la por mais algum tempo e só depois poderíamos ponderar mudar — explicou calmamente, mas não o suficiente para as minhas mãos pararem de suar. — Vamos aumentar a dosagem e ver o que acontece.

— Vamos fazer disto uma experiência? Disse-me que por esta altura eu já me ia sentir melhor, mas não há nada de melhor aqui. Estou igual ou pior.

Sem dizer nenhuma palavra, a mulher permaneceu sentada, mas não consegui fazer o mesmo. Agarrei na minha mala e levantei-me. Como era suposto aguentar mais tempo assim? Não aceitava a ideia de continuar a fazer algo por uma experiência. Não podia continuar a viver com uma falsa esperança.



E então? O que temos a dizer sobre este capítulo?

Com amor,

MukeCakesauce


SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora