Contar até dez

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Calum

Aguardei pacientemente junto ao parque de estacionamento pelo momento certo. Com o capuz a proteger-me do vento, voltei a verificar as horas. Ela já deveria estar por aqui, pensei. Soprei pela demora e tentei acalmar os meus pés agitados. Tinha de permanecer tranquilo.

"Lembra-te, Calum, de contar até dez e, quando lá chegares, repete tudo outra vez."

Revirei os olhos pela voz calma e monocórdica da minha terapeuta a viver na minha mente. Quão ridículo alguém poderia ser ao achar que contar até dez resolveria tudo? Ainda assim, estava determinado em manter o bom trabalho que até então tinha alcançado, por isso, contei até dez e, no final, repeti. Ao fim de 30 repetições, levantei-me automaticamente quando a vi a descer a rua até ao café. Estás atrasada, pensei. No silêncio da rua ouviam-se os seus passos e até os seus resmungos sobre algo que lhe incomodava. Apressei-me a entrar atrás de si. India usava o cabelo solto naquele, para variar. Não havia sinais do gorro escuro usado, o que apreciei; ficava-lhe bem o cabelo despenteado pelo vento.

— Este bolo, por favor. — Vibrei pelo doce sonido da sua voz.

— Para mim também, por favor. — Sobressaltada por me ouvir, deu um pequeno salto. Depois voltou-se para mim, presenteando-me com o seu sorriso rasgado.

— Calum! Olá — gargalhou. — Que bom te ver aqui.

— Já se tornou um hábito vir até aqui — comentei atrás dum sorriso envergonhado. Não sabia como agir perto dela.

— Então faz-me companhia, pode ser?

— Oh. — Respirei fundo, entusiasmado pelo seu convite. — Sim, posso ficar. Pelo menos aqui está quente.

Deixei que India guiasse a conversa. Não é que tivesse algo interessante para partilhar consigo durante o café, por isso, o quer que ela tivesse para contar, seria sempre interessante. O tema foi a dificuldade e a inutilidade de ter de aprender Cálculo. Críticas, desde a sua pobre capacidade em lidar com números, até à sua cansativa professora que fazia exames desnecessariamente difíceis foram tecidas. Pude ver o quão complicado era, de facto, para si esforçar-se para receber apenas uma nota medíocre no final do semestre. Ao longo das nossas poucas — embora valiosas — conversas, aprendi que uma sobrancelha sua era erguida e que revirava os seus olhos em sinal de grande frustração. Outras vezes limitava-se a suspirar repetidamente. Gostava de a ouvir falar, eu tinha todo o tempo do mundo para admirar todos os ínfimos detalhes no seu rosto e, se tivesse sorte, descobrir algo mais. Como, por exemplo, naquele dia tive o privilégio de reparar que tinha um dente que fugia à perfeição do seu sorriso; era simplesmente bonito de se ver.

— Estou suja de algo ou assim? — indagou, desajeitada.

— Oh, nada disso! — logo recompus-me — Só estava muito concentrado no que estavas a dizer.

A minha resposta pareceu diverti-la e soltou um riso envergonhado. Era um dos meus favoritos, por acaso.

— E estás a gostar de Fall River High? — tive os seus olhos curiosos postos em mim.

— A escola é boa, apesar de nunca vir a habituar-me à sua confusão do costume e, claro, pensei que entrar na equipa de futebol fosse ajudar-me a conhecer outras pessoas. — Pausei para apreciar mais um pouco a pequena cova que o seu sorriso gerava na bochecha. — Assim posso parar de incomodar-te.

— Não digas coisas dessas. Eu gosto de falar contigo, somos amigos. Não precisas de te sentir assim em relação a mim.

Foi a minha vez de rir pelas suas palavras inesperadas. Amigos. Era bom saber que éramos amigos. Ela parecia ser uma boa pessoa para ter enquanto amiga e, quem sabe, talvez a nossa amizade viesse a evoluir um pouco mais.

***

Deixei a minha bicicleta esquecida na entrada; não havia tempo para a prender como deve ser. Atrapalhado com uma mochila às costas e um saco atravessado no pescoço, desatei numa corrida pelo recinto fora. Não podia chegar atrasado ao meu primeiro treino oficial na equipa de futebol. O treinador tinha sido bastante claro, alertando-me de que se tratava de uma equipa promissora e que não teria qualquer problema em recuar na sua decisão, caso me mostrasse incapaz de comparecer a horas. Já ofegante, espreitei pelas horas no relógio escondido pelo blusão e ao reparar que faltavam apenas dez minutos, dei um último esticão.

— Vejam só quem acabou de chegar... — O capitão troçou, mal pisei dentro dos vestiários. — E atrasado, pelos vistos.

Pensei que um sorriso lhe fosse convencer a deixar passar um erro de iniciante, mas o seu maxilar proeminente mostrou-me que não era assim tão fácil de ser persuadido. Sem mais desculpas ou conversas, despi a minha roupa, trocando para o uniforme. Todos já estavam prontos, de sapatos atados e de joelheiras postas.

Merda, repreendi-me logo por ter pedido a dose extra de batatas com queijo. Se não o tivesse feito, teria chegado a tempo. Resolvi que nada mudaria se continuasse a matutar, por isso, enfiei a camisola com o meu nome pela cabeça e puxei os meus caracóis pendurados para trás. Ainda faltavam três minutos e apertei os atacadores o mais rápido que pude, aproveitando para dar uma vista de olhos para os que estavam prestes a jogar comigo.

— Wright, não temos o dia todo! — alguém reclamou.

Soprei por ter concluído que não seria fácil fazer amizades, pelo menos ali dentro, no meio de todos os matulões. Quando me levantei, notei que já se encaminhavam para o relvado, então corri atrás deles. Lá fora estava o treinador, de barba cheia e de sobrancelhas farfalhudas, sempre sério. Alinhei-me ao lado de todos os outros e relaxei por ter feito tudo a tempo.

— Hoje o treino vai ser diferente. — A sua voz rouca era intimidante. — Os grupos vão ser desfeitos e vou ver como é a dinâmica entre todos.

Ele não deixou que os lamentos e reclamações dos restantes fossem ouvidas, cortando de imediato. Apontou o seu braço largo para mim, dizendo:

— Wright acabou de chegar e é importante ver de que forma todos se levam. — Ele ajeitou o chapéu na cabeça. — Lembras-te como foi, certo, Clifford? Vocês os dois ficam juntos, por hoje. Vamos ver como o novato se aguenta.

Procurei por entre os grandalhões quem seria o dito Clifford. Para além de ter sido o último a entrar antes de mim, era o único nome que conhecia para além de Jack. No entanto, quando percebi que os meus olhos não me enganavam, quis rir.

Ele? Aqui?

Quando  me encontrou, o seu semblante enrijeceu. Com um aceno, veio na minha direção, estendendo-me a mão:

— Parece que nos encontramos de novo.

— Parece que sim. — Apertei-lhe a mão.


uh oh... Parece que temos aqui alguma rivalidade entre estes dois.

O que acharam?

Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora