Respiração hipnótica

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Michael

As ruas lá fora estavam escuras, escassamente iluminadas pelos fracos candeeiros alaranjados. Estavam também vazias, casualmente ocupadas por bravas almas que ousavam atravessar o breu intimidante.

— Fechas a loja por hoje? — o meu superior perguntou. Preparou-se para deixar o seu uniforme no cabide, depois agarrou no seu boné.

— Claro. Até amanhã.

Havia algo de particular nas lojas de ferragens, algo que nem sempre tive a sensibilidade para reparar; um cheiro a mistura de madeira fresca e a ferrugem, diria eu. Fui deixado com os últimos itens do inventário à espera de serem organizados nas devidas estantes e gavetas. Era um trabalho simples e metódico, à exceção da interação com os clientes regulares que sempre lá iam comprar as mesmas coisas: fita cola cinzenta e pregos. Não era particularmente apreciador de turnos noturnos, muito menos quando sabia que India aguardava por mim em casa, sozinha.

Era em instantes como aquele, em que me perdia de aborrecimento no meio de tantos parafusos e abraçadeiras, que eu mergulhava em profundos pensamentos nem sempre bem-vindos. Conversas vulgares de bocas sábias tocavam como um disco riscado na minha mente, alertando-me para os riscos de coexistência permanente. Na altura recusei-me a ouvir palavras tão pessimistas, verdadeiramente crente de que o nosso amor escaparia à regra geral de todos os outros que já estiveram enamorados; acreditei que o nosso amor pudesse ultrapassar todas as barreiras. Não poderia estar mais triste por anunciar que estava errado. Atenção, não há qualquer motivo para duvidar do amor ardente que ainda me consome aquando do seu mero vislumbre, mas seria demasiado ingénuo dizer que tudo isso era o que eu era capaz de ver. Assegurava-a diariamente que tê-la comigo era tudo o que precisava e era verdade. Também era verdade que não me arrependia de nada, muito menos de ter mudado a minha vida por ela; por nós. Só não eram verdadeiros o entusiasmo e o otimismo que achei que permaneceriam para além da passagem do tempo. Sydney já não era a mesma. Dantes, repleta de sol e de água salgada, estava agora arrasada pelo cansaço e monotonia que aceleravam o meu descontentamento. Ainda que estivesse feliz por estar de volta a casa, sabia que ela não estava e, ainda que por vezes fosse ingénuo, não era cego.

A casa estava igualmente escura. Se não fosse o mapa mental dos recantos da casa, teria tropeçado imediatamente na cadeira espetada fora da mesa. Pé ante pé, segui o barulho vindo da televisão da sala, onde encontrei Luke a dormir profundamente. A sua boca entreaberta soltava curtos roncos e a sua mão ainda segurava o comando, mas acordou quando desliguei as medonhas televendas.

— Obrigado por teres vindo — sussurrei.

— Sim, claro. Sem problema. — Bêbedo de sono, pegou nos chinelos e na chave do carro. Depois, antes de sair, disse:

— Ela está no quarto. Ficou lá o dia inteiro.

Abri a porta do quarto lentamente, detestaria perturbar o seu descanso. Desfiz-me do crachá preso na blusa e, antes de ter o deleite em deitar-me ao seu lado, observei-a: India era alguém que, em certas ocasiões, era imperativo admirá-la e, naquela noite, foi uma dessas vezes. Raras eram as horas em que estava tão pacífica. Descansava o braço sobre o peito, as pernas escapavam ao calor do lençol e a sua barriga saliente espreitava pela sua blusa. Com um longo suspiro deitei-me na extremidade oposta à sua.

Era disto que falavam? Desta frieza e distância que, com o tempo, sempre chega? Se sim, ainda me recusava em ceder e a aceitar que tal realidade se assemelhava à minha; se não, então estava grato por ser apenas mais um devaneio da minha parte. Sim, exato. Com essa reconfirmação, e por saber que o dia seguinte seria uma cópia exata do dia atual, resolvi observar a maneira hipnótica como o seu peito subia e descia. Teimava em mirá-la como se fosse a última vez.


Com amor,

MukeCakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora