Ondas de más notícias

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Michael

Com o tempo, Austrália voltou a ser o país que conhecia e Sydney voltou a ser a casa quente, solarenga e salgada, que sempre conheci. Com o tempo, os problemas de Fall River permaneceram lá; foi um processo inconsciente. Com a ausência de notícias e pelo raro contacto com todos os que lá conheci, tive espaço para me dedicar a fazer aquilo que sabia melhor: misturar-me nas multidões e a enfiar a minha cabeça debaixo da água. Durante a minha estadia estrangeira, não dei pela falta que o surf e o mar me faziam; já estava tão habituado a deixar o passado para trás das costas que nem me permiti a imaginar a sensação dos pés a afundarem-se na areia e do sal seco preso à pele. O meu rosto estava sempre escaldado, avermelhado pela mistura de um sol agressivo e de uma pele desprotegida. Já resistente à água gelada e com uma rapariga lindíssima à minha frente, podia voltar a sorrir.

— Jane! — chamei-a enquanto nadava em cima da prancha. Estava sentada na sua prancha, a apreciar a calma das ondas, quando o seu rosto encarou o meu.

O seu cabelo ruivo, longo e pesado, sacudiu a água e notei as sardas cada vez mais intensas pelo sol; sorriu-me abertamente com duas manchas de protetor solar em cada bochecha, ajeitou o biquíni, vindo ao meu encontro. Tal como a cor do seu cabelo, Jane era uma pessoa ardente: vivia intensamente, beijava loucamente e tocava-me perdidamente. Foi nela a quem sempre recorri nas noites difíceis e nos dias solitários. Foram nos seus lábios que procurei pelo desejo de querer alguém e foram nos seus dedos que procurei escapar da solidão. Nunca tinham sido trocadas palavras amorosas nem promessas da mesma natureza, isso é claro. Entre nós existia uma boa amizade de cooperação em que nos dávamos aquilo que procurávamos. Ela sabia que o meu coração era um destino de difícil acesso, um longo e traiçoeiro trilho escorregadio, por isso, mantinha-se longe. Contudo, as longas horas passadas consigo na areia e os amassos bêbedos atrás do bar da praia eram o nosso passatempo favorito. Ah, e surfar, claro.

— As ondas hoje estão incríveis. — A ponta dos seus dedos raspava a superfície da água cristalina. — Queres comer algo depois?

— Sim, sem dúvida.

O mar abria-me o apetite naturalmente ambicioso e, por saber que estaríamos entre as ondas até o céu ficar laranja, decidi que seria a melhor decisão. Nadávamos lado a lado ao avistar a onda que se formava no horizonte, prontos para dedicar-nos à adrenalina e aventura. Quando um de nós caía, o outro ajudava; e no seu caso, inclinava-se para deixar um beijo espalmado nos meus lábios; no meu caso, aproveitava para lhe acariciar as pernas lisas e sardentas. Sempre que o fazia, recebia o seu olhar divertido: mirava-me sempre de lado, as pestanas ruivas eram longas e os olhos claros desafiavam-me. Sabia que, depois do mar e do hambúrguer, os seus dedos procurar-me-iam desesperadamente a caminho da sua casa; mal podia esperar por esse momento. Com as horas a passar depressa, outros amigos seus juntavam-se a nós, onde partilhávamos uma saudável competição.

— Clifford!

Um dos rapazes de cabelo comprido parecia sempre desafiar-me ao aproximar-se dentro da onda. Eu, por outro lado, estava demasiado entretido e concentrado para lhe prestar atenção; estava determinado a ganhar um jantar de graça e não estava disposto a deixar ninguém me roubar um hambúrguer com queijo gratuito, nem mesmo Luke que tinha acabado de chegar à praia. Sacudi a água no meu cabelo e nadei até perto da costa.

— Luke, ainda bem que chegaste! — gritei-lhe de longe, mas as suas mãos continuavam arrumadas. — Onde está a tua prancha?

Indaguei ao aproximar-me de si. Levei a prancha debaixo do braço, energético e à espera de que a minha energia o contagiasse também, mas nada pareceu mover-lhe. Luke estava calado, imóvel e sério. Estranhei o seu silêncio, ainda mais a ausência de uns calções de banho e de Alison ao seu lado. Pousei a longa prancha na areia, dedicando-lhe toda a minha atenção, mas o único aspeto que se movia era o seu cabelo pela brisa cada vez mais forte pela paulatina ausência do Sol; arrepiei-me. Baralhado, observei-o melhor: tinha o cenho franzido, a boca pressionada numa linha e o telemóvel numa mão descaída e estática. Os seus olhos claros fitavam-me, pareciam rajados de vermelho, foi aí que perguntei:

— O que se passa, meu? Por que estás assim tão calado?

Não soube o que pensar durante os longos segundos silenciosos. Imaginei que estivesse a brincar comigo ou que estivesse a julgar a minha companhia, como sempre gostava de fazer. De acordo com Luke, eu agia como um perfeito idiota, sem bússola alguma, a viver ao sabor de um vento pouco bonançoso. Na maioria das vezes, não tinha qualquer problema em ignorar a sua desaprovação, mas naquela tarde houve algo mais para além daquilo. Apertou a cana do nariz, fechou os olhos e respirou fundo.

— Ligaram-me de Fall River.

Naquele instante, tudo em mim foi apertado; a minha caixa torácica esmagou os meus órgãos e o meu cérebro esteve prestes a explodir. Não proferiu mais palavra alguma, mas a menção daquela cidade com uma postura daquelas foi o suficiente para me fazer pensar sobre o pior. Franzi a testa, afrontei-o por breves momentos e tornei a olhar para o pôr-do-sol. Sem nada dizer, agarrei a sua blusa, implorando para que não confirmasse as minhas suspeitas, mas de nada serviu.

— Houve um problema.

Foi aquilo que temi ouvir. Eu sabia que ela não estava bem, já não o estava há imenso tempo, mas tinha algo na feição de Luke e na ironia do pôr-do-sol que me deixou agitado, totalmente desnorteado, sem saber o que fazer. Perdido, deixei-me cair na areia, sem encontrar a força para agir. Foi nesse momento que o meu corpo foi bruscamente abanado por Luke e o cabelo ruivo de Jane veio ao nosso encontro.

— O que se passa? — indagou, mas não pude responder. Ao invés disso, Luke tentou obter alguma reação minha. — Luke! Por que está ele assim?

Naquele curto período, todas as memórias passaram na minha mente como um filme acelerado. Rodavam imagens de uma India chorosa e raivosa para depois mostrar-me outras cenas de uma India feliz e sorridente na neve; por fim, cada rosto sorridente e cada lágrima por mim recordada apunhalaram-me por todo o lado. Sentimentos de culpa, remorso e medo tornaram a acordar ao fim de tanto tempo adormecidos. Atordoado, agarrei na minha prancha e na minha camisola, tropeçando nos meus pés dessincronizados pelo areal fora.

— Michael! Espera! — Luke tornou a chamar-me. Foi difícil parar-me. A minha mente, ainda que vazia, foi domada pelas minhas pernas que demandavam atravessar todo o globo até lá chegar.

A minha perna saltitava em transparente nervosismo enquanto o som monótono à espera que me atendessem a chamada me perseguia. Mordi as minhas unhas, tinha até estragado o meu lábio por ter estado entre os dentes. Luke andava de um lado para o outro no quarto, sentava-se e levantava-se logo de seguida.

— Não te devem atender. Já tentei antes, mas nada.

Voltei a insistir. Leah tinha de me atender. Imaginei que estivesse ressentida pelo que aconteceu entre mim e India, afinal de contas estava igualmente ressentido comigo mesmo, mas fui egoísta: quis que me atendesse e que apagasse todos os maléficos diabos que me atazanavam em cada ombro. Foi no meio dessa comoção que finalmente a ouvi:

— Michael.

— Leah! Finalmente... — Atirei-me na cama de alívio. Estava pronto para começar a bombardeá-la com perguntas, mas foi quando a ouvi soluçar do outro lado que me calei. Soluçava, fungava e assoava o nariz, intimidando-me com a mera imaginação de que o pior tivesse acontecido. Prosseguiu.

— É a India. — Pausou para respirar fundo. — Ela está no hospital. Não sei o que poderá acontecer...

Aquela chamada foi o suficiente para me pôr de pé a encafuar roupa dentro de um saco e de procurar pelo voo mais breve possível. Leah tinha-me contado sobre o desmaio a meio de um simples passeio, do qual não tinha conseguido acordar ao fim de algum tempo. Felizmente despertou, mas todo o grupo de condicionantes que a fragilizavam pareciam colar-se como ímanes ao seu corpo, sugando cada sopro seu. Eu tinha de voltar. Era infeliz que fossem necessárias notícias graves quanto essa que movessem um homem; foi triste que, só ali, apercebi-me de que o seu lugar no meu coração era insubstituível.


Com amor,

Mukecakesauce

SICK. - 3 Caminhos CruzadosOnde histórias criam vida. Descubra agora