92.3 - humano e cru

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O MUNDO FICOU BRANCO E PERDEU TODA A FORMA.

A COROA SE JUNTOU. AS CHAMAS FORAM APAGADAS. O CINZA E PRETO VIRARAM PRATA. AS PEDRAS BRILHARAM. UMA MEIA-LUA CRESCEU E SE TORNOU BRILHANTE.

ELA SE LEMBROU DE FALAR.

E ELA

FALOU

O

SEGUINTE:

Eu já vi guerras, eu já vi mundos, eu já vi as terras e as pessoas. Já me banhei de sangue, já me encharquei de lágrimas, já fui coberto de amores. Já vivi. Já morri. Já revivi isso um milhão de tantas vezes.

Enquanto minha forma se torna nada, eu me relembro de todo o meu passado. Minhas felicidades se vão, e a amargura das minhas agonias toma conta de todo o gosto que tive por essa vida. Enquanto os gritos dirigidos à mim se tornam prisões, minha forma derrete e desaba ao chão. Meus olhos se inclinam aos céus, e seus azuis se misturam. As estrelas já não mais brilham nas cidades.

Meu corpo é devorado pela terra, e minhas memórias tomam forma de gente. Algumas delas caminham sem rumo por baixo de pontes, seus estômagos roncando sem nunca se satisfazerem. Outras perambulam por campos de terra, onde procuram por bombas que nunca explodiram, sempre a procura de um rio limpo para lavarem suas mãos sujas de sangue. Nunca o acham.

A parte de mim que ainda é eu se senta em prédios de metal e vidro, e se torna obcecada. Ela procura por reflexos do que já foi, tentando entender quando perdeu a felicidade. Ela agoniza. Ela se obceca. Ela analisa as pessoas que conhece, analisa as falas, analisa os acontecimentos, tenta compreender a falta que me resta. Ela se junta às pinturas das paredes, vendo pais que conseguem ser carinhosos com os filhos, e se pergunta porquê não pôde ter algo assim.

A parte de mim que ainda é eu deixa de existir após alguns anos, quando suas mãos calejadas sangram sobre botões de máquinas industriais, os milhares de olhos observando as figuras entristecidas que perambulam. O sangue carregava a última gota de humanidade.

Após anos e anos procurando por respostas, minhas lembranças amargas se tornam raiva e se acusam de o terem. Elas se destroem. Possuem medo de que a raiva se torne facas, facas e armas afiadas capazes de destruir o mundo. Caso as armas sejam deixadas por aí, talvez alguém se machuque. Talvez eu me torne igual a eles. Talvez possam finalmente serem chamadas de monstros sem alma.

O que não é tomado pela raiva pousa em bibliotecas e lê. A falta de raiva e entendimento tenta se tornar algo mais belo com o fascínio. Ele lê, lê as ficções, algumas digitais, outras físicas. Lê e ama, lê e imagina, e o imaginar se torna algo a mais, apesar de não saber o quê é, exato, mas é quente, e é bom, e me lembra o amor que eu deveria ter sentido e já senti. É humano, e é a melhor forma de humanidade que acha conseguir sentir.

No amor, o que me sobra se conecta. Se conecta à memórias de outras pessoas que também amam, e que também imaginam, e que também sonham. Algumas delas leem as ficções. Outras não, mas elas não se importam, pois os números e os cálculos e até mesmo as palavras difíceis e nomes científicos lhes dão esperança, lhes fazem imaginar, lhes fazem querer criar.

A ideia de poder criar algo mais belo do que eu me fascina. Algo puro, algo belo, algo que possa tornar o resto de mim menos monstruoso, algo que talvez consiga ajudar outra pessoa além de mim. A ideia de ajudar me faz ter esperança, e esperança me assusta, mas não posso a abandonar.

Eu leio as invenções que os outros se dedicaram à fazer. Eu leio as criações, eu noto que as ficções nasceram de gente, não de crueldade. Eu noto que a natureza parece ser melhor do que o sangue que eu perdi nas máquinas.

(LGBTQIA+) O Conto do Feiticeiro MalignoOnde histórias criam vida. Descubra agora