Eu ouvia histórias de criaturas sanguinárias e monstros que apareciam sob o manto da noite, quando criança. Em todos os lugares, existem lendas e contos sobre as crenças das pessoas e aquilo que elas consideram verdade. Ouvi muitas, ao longo de minha vida insignificante. Contos sobre animais que se escondem em florestas, seres que roubam sua alma se forem olhados nos olhos, mulheres capazes de controlar qualquer homem que escute o tom de sua voz ao cantar, pessoas que podiam fazer alguém matar e morrer sem perceber que estão sendo controladas por outrem. Muitas lendas são somente invenções de mentes férteis demais — mas até as fábulas têm sua parcela de veracidade.
Gostaria de poder dizer que a vida se resume ao que podemos ver. O problema é que descobri que a vida costuma ser feita de muito do que não vemos: a esperança, a fé, a confiança... O medo e toda a sombra que provém dele.
Uma figura de meu passado me dizia coisas como não acreditar na fantasia, na criação ou em qualquer palavra que sai da boca de um divagador. Por isso, em toda a minha vida eu tive uma única certeza: sobrevivência vem acima de toda a emoção ou sonho. Guardei os sonhos de menina no canto mais profundo de meu ser, vivi anos e anos sabendo que não deveria acreditar em nada que não lógico.
Bom, dizem que o começo é sempre pior. Ver o garoto transformar-se em lobo foi só o começo. No decorrer dos dias, deparei-me, sem querer, com homens de olhos negros que eu não havia notado, ou garotas cujos cabelos pareciam mover-se sozinhos. Passei a identificar no porte ou modo de andar de alguns uma característica que os definia, para mim, como seres inumanos, como se meus olhos tivessem sido abertos a partir da primeira manifestação notável de um sobrenatural.
Fingi sorrisos, risadas e alegria, disfarcei o desconforto, o medo. Era mais fácil assim. Afinal, eu segui dessa forma pelos últimos sete anos em que estive longe de minha cidade.
Não quis saber os tipos de seres que me cercavam. Preferi sorrir, acenar e fingir que nada daquilo me incomodava e trazia pesadelos a cada noite. Calei-me sobre meus temores e deixei-me fazer o que faço de melhor: observar. O problema é que calar, contemplar e guardar informações e percepções para si não são aptidões completamente utilizáveis na Reserva.
Em minha vida, estive muito sozinha. Mesmo com a companhia de Chia, Enzo e os rebeldes de Mônaco, estar em contato silencioso com meu próprio interior é uma mania que adquiri, por segurança, por necessidade, por hábito, e que nunca foi questionada. Porém, quando, após minha primeira semana completa de meus dias com os Cae, nove longe de Aliança e a vida que eu conhecia, Sam decidiu mostrar-nos onde iam parar os jovens que sumiam a cada dia do refeitório, descobri que não poderia mais calar os segredos que acreditava ter recebido de Dakota. O copo estava cheio e eu tinha a séria impressão de que guardar as letras e desenhos incompreensíveis era a escolha errada.
— Eles vêm para cá todos os dias desde que chegaram — contara Samantha, quando nos guiava por corredores que desconhecíamos. — A cada dia, dois ou três chegam, entre espasmos ou convulsões. Tentamos manter todos eles em segredo para não causar pânico entre o restante dos recém-chegados ou daqueles que estão em treinamento, mas está ficando difícil ocultar tantos desaparecimentos consecutivos.
Ali, minha boca estava entreaberta em espanto, as unhas de Chia cravadas em meu antebraço como que em busca de apoio para o que Sam nos indica. Em meus sete anos na Sétima Cidade, eu vi dezenas de pessoas sendo corroídas por vírus desconhecidos, doenças potentes, ferimentos intratáveis, todos definhando aos poucos pela falta de médico ou de conhecimento. Mas eu jamais presenciara uma cena como aquela.
Duas fileiras de macas posicionadas opostas uma a outra, encostadas nas paredes da sala, com mínimos espaços entre si. As janelas dali eram cobertas por grossas cortinas negras, tendo a iluminação natural bloqueada por completo. Pequenas luzes avermelhadas brilhavam em pontos específicos do teto, concedendo aos corpos uma tonalidade doentia e enjoativa de vermelho e marrom. Eles se contorciam vez ou outra, quando eu os estava olhando, mas na maior parte do tempo pareciam nada mais que cadáveres em diferentes estados de putrefação.
Mesmo por detrás do vidro que me separava da sala, e da parca luminosidade, podia definir com clareza a imagem à frente. Marcas vermelhas se espalhando pela pele, grossas bolhas em formatos grotescos nascendo em todas as partes possíveis, e a carne inchada e amarelada...
A Peste chegara à América com os adolescentes de Aliança.
Um garoto se levantara e se debatera, gritando e rosnando, tremendo e engasgando com força, pendurando-se na cortina para erguer-se. O Sol entrara em contato com seu antebraço, fazendo-o gritar mais.
Uma mulher vestida de marrom-escuro, com óculos e uma máscara que cobre todo o rosto, adentrara o ambiente com rapidez, aplicando algum remédio na veia do garoto, que se acalma o bastante para deitar mais uma vez.
Seus resmungos ainda soavam abafados em meus ouvidos quando decidi que falaria o que sabia para Samantha, e tentaria convencer Penny a fazer o mesmo.
Agora, minutos depois de um longo silêncio, observando o garoto adormecido, tenho que perguntar-me como eu pude sair de uma jaula para adentrar um futuro cemitério.
***************************************
Não se esqueça de clicar na estrelinha!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...