— Basta!
A ordem de Samantha penetra meu transe, contudo estou fora da extensão de seu timbre suave, do tom baixo que é sua voz após seu grito.
Frida agarra meu braço, fazendo-me perguntas que saem afogadas para meus ouvidos tapados.
Os gritos se acalmam. Os protestos acabam. As tentativas de fuga cessam. As emoções quase não existem entre os jovens que observam, como eu, inexpressivos, o homem-lobo sair correndo em direção à floresta, passando como um raio por nós.
Estou inerte, eu sei. Metade de nós está. E sequer tento fazer qualquer coisa para mudar meu estado atual.
Minha cabeça permanece apoiada na parede, Penny em minhas costas, parada como eu, embora seja nada mais que uma tentativa de ficar alheia aos acontecimentos inumanos que se desenrolam adiante. Eu mesma preferia não ter de acompanhar tão de perto, em especial à luz intensa do Sol próximo do meio-dia, que me permite enxergar detalhes que não gostaria de poder notar.
Você aceitou fazer parte desse mundo, é o que me vem à cabeça. Conheça-o e não o tema, pois há muitos segredos mais para desbravar, acrescenta-se à minha fala, embora a voz, se é que eu posso chamar assim, não seja a minha.
Samantha alterna olhares entre os seres insossos que a observam, e tem um breve interlúdio ao mirar Penny e eu, como se calculasse os estragos que foram feitos. Depois, suspirando com a mão na testa, vira-se para as pessoas que causaram esta confusão, fitando Victoria por um milésimo de segundo.
— Acredito que, por hoje, essas demonstrações são o suficiente — fala, com obviedade. — Pelo visto, teremos que prosseguir com nossas atividades programadas outra hora. Obrigada, meninas.
As duas a quem ela se dirigia assentem e saem correndo morro acima.
— Sentem-se todos em seus respectivos lugares, por favor — pede Samantha, em um suspiro, mesmo que a gentileza em seu tom não tire o efeito que afirma que não foi um pedido, senão uma ordem.
Ela caminha por nosso círculo com calma e paciência, esperando o tempo de cada um para se acomodar e sair do estado de perplexidade. Os olhares de temor não a afetam, tanto quanto os de raiva não o fazem.
— Alguns de vocês acharão desnecessária a demonstração que acabaram de presenciar, mas, apesar de um pouco prematura. — Esta parte ela diz olhando para Victoria — posso garantir, não é dispensável.
Sinto meus dedos voltarem ao normal, quando a mulher passa pelo espaço frente a mim, lançando-me um olhar ambíguo que não compreendo; nem tento.
Dedos finos apertam meu braço. Não assimilo o toque.
— Se notarem, conhecidos ou companheiros de viagem, que viram no refeitório ou no navio quando vieram para cá, sem contar com os que decidiram partir, não estão presentes. — Sam passa o olhar por cada um dos integrantes do grupo. — Há um motivo para isso, e o motivo é o fato de vocês serem diferentes deles.
Ergo uma sobrancelha, sem aceitar o que estou ouvindo.
— Isso é loucura.
Viramo-nos em conjunto para olhar para a garota que fez a exclamação aguda. Reconheço-a como a garota que estava com Olhos-de-Peixe, em nossa primeira refeição aqui. Ela se levanta e aponta o dedo para Samantha, como se direcionasse para ela toda a culpa sobre o momento anterior.
Não posso dizer que não atribuo, em parte, a culpa à Samantha.
— É loucura — repete, sem se afetar pelos olhares que recebe. — Eu saberia se fosse virar um... Animal.
Cospe a última palavra, com claro desafio no tom, como se esperasse uma réplica. Samantha nivela seu olhar ao dela, sem deixar-se abater ou mesmo mudar sua expressão como resultado das palavras furiosas da adolescente alterada.
— Eu nunca disse que você viraria um animal, minha cara.
A fala de Samantha sai com seriedade. Seu timbre faz com que eu me lembre da forma como conseguiu conter-me no refeitório, quando comecei a acusar Frida, com tanto poder contido em palavras firmes, baixas, suaves na mesma medida que decididas e definitivas, sem deixar margem para questionamentos.
— Mas eu afirmo sem a menor dúvida que há, sim, a probabilidade de vocês, de cada um de vocês aqui, ter algo em seu gene que o diferencie do restante do mundo, um detalhe que vocês nunca perceberam ou reconheceram — diz a mulher. — Vocês não serão necessariamente o que acabaram de ver, mas podem, sim, ser mais do que jamais pensaram ser.
— Eu não quero ser uma besta e não vou viver com nenhuma. Não importa o que vocês, seus mentirosos, dizem.
Esta fala provém de um garoto mais velho, cuja tatuagem tribal em seu braço se revela quando ele se levanta, fuzila Samantha e Victoria com ódio e uma pitada mal disfarçada de medo, e vai subindo a colina sem olhar para trás.
— Quem o seguirá? — Indaga Samantha.
Eu vejo cinco vultos, cinco pessoas levantando-se. Sinto que o olhar de Sam ainda passa por mim, como se pensasse que eu me incluiria ao grupo nesta oportunidade. Eu fixo minha atenção no chão e não ergo a cabeça para conferir, preocupada com o que vou acabar revelando se a fitar.
— Todos os que desejarem partir terão uma última chance para tal — ela prossegue, assim que o grupo está distante o bastante. — Se ficarem, porém, eu e todos os Cae daqui faremos o possível para ajudá-los a se entender, a descobrir quem e o que são, e a dominar suas habilidades. Eu dou minha palavra.
"Não podemos fugir para sempre", disse-me Nicolle, anos atrás. "Não pode fugir para sempre", disse-me Chia, há pouco.
"Eu não posso mais fugir", repito e repito.
Não. Não, eu não posso. Estou cansada de tentar me afastar, de tentar não ver, de ter que fingir ser cega. Eu estou cansada.
Rio, sem humor.
Eu não posso e nem vou fugir desta vez.
Minha promessa é uma chance, uma chance para tudo o que este mundo oferece, para tudo o que virá a acontecer. E é essa promessa que me mantém em pé nos braços de Frida, quando ela dá um passo adiante e me sustenta com seus braços.
É no apoio de minha nova amiga que, hesitante, mas sem pensar em voltar atrás, deixo-me ser guiada para junto daqueles que podem vir a ser minha nova família.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...