Capítulo 21 - Parte Um

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O assunto morre com a fala evasiva, a mais brusca que ouvi Samantha pronunciar. Ela, porém, trata de reanimar a conversa menos de um minuto depois, e aceitamos isso como uma bem vinda bandeira branca.

— Aqui tem muitas histórias, informações e coisas incríveis sobre o Era do Antigo, coisas que não poderei mostrar-lhes agora, mas, além de contar histórias, ele tem outra grande utilidade —, segreda-nos.

Inclinamo-nos ao mesmo tempo, curiosas com as páginas que nos são oferecidas para vislumbrar.

Intrincadas pinturas, perfeitas como nunca imaginei seu possível, estão visíveis ao meu olhar curioso. As letras em delicadas formas, manuscritas com um capricho invejável, não tem significado para mim. Mas assim mesmo eu as toco, com nítido encantamento, meu respeito sendo manifestado por um carinho cuidadoso às páginas guardiãs das coisas vivenciadas por um país que não deveria existir, recordações e narrativas de uma história que sobreviveu por longos anos em prateleiras, mesmo quando foi esquecida pela mente daqueles que deveriam guardá-la.

— Esta é a mansão? — Frida pergunta primeiro que nós, apontando para uma das pinturas.

As cores desbotadas não tiram a vivacidade da imagem retratada: um palacete semiacabado recheado de pessoas carregando materiais para sua construção.

É mesmo incrível.

— É sim —, Samantha parece satisfeita com nossa atenção. — Esta é a Reserva pouco antes do Declínio, quando o antigo país dos Estados Unidos era uma das maiores potencias mundiais. Vocês vão aprender um pouco disso com Giulia, em breve.

Passamos mais uma página, sem imagens, dessa vez. Voltamos à página anterior.

— Eu nunca vi uma pintura real assim —, comenta Penny, com deslumbre.

Eu abstenho-me em concordar com a cabeça, cada vez mais confortável na presença das peculiares garotas. Sem me importar com a coceira no céu da boca, comichão insistente que provoca minha língua, eu sufoco os impulsos que me tentam a fazer várias outras perguntas. Bombardear Samantha com tudo o que quero saber não é o ideal a se fazer, por isso aceito que, lá no fundo, contrariando tudo o que aprendi há anos, essas são informações que, imagino, não devo nem preciso ter agora.

Engulo a bile ao me lembrar do que a insistência para ter informações me trouxe: a culpa de ver Alina morrer por minha causa. Bem, mas ela não poderia estar morta se a vi em minha janela.

Certo?

— Quando as tecnologias consideradas desnecessárias foram abolidas para o uso público graças à espionagem e invasão tecnológica aos países antigos —, começa Samantha, voltando meu foco a ela —, tivemos que descobrir como retratar com o máximo de precisão nosso mundo, para não perder suas mudanças conforme o tempo passava. Fotografias não eram mais uma opção, então as pinturas, desenhos e reproduções artísticas em estátuas e outros meios foram adotadas como um meio de não esquecermos a História.

Meus olhos se erguem para o vitral, donde é representada uma figura em tamanho real de um cenário que representa paz, tranquilidade e segurança. Recordo-me da garotinha no campo de margaridas, lírios e centeio, como a do vitral do refeitório; é igual ela, embora aqui a cena seja outra.

Ela se ergue à frente de uma enorme árvore, com raízes profundas que saem da terra e tronco grosso como um poço. Com as mãos erguidas e nas pontas dos pés, fitando uma casinha suspensa por um dos muitos galhos que se curvam ao redor da árvore, a menina tenta alcançar a casa de madeira, que parece conter um pequeno ninho em um espaço circular vazio, na parte superior da construção minúscula.

Ver a representação artística me sobressalta de um jeito que não deveria. É como se eu sentisse o aroma forte da terra que está sob seus pés, o abraço da brisa e o calor envolvente que descem do céu azul sobre sua cabeça. Sinto o peso da casinha de madeira que ela tenta pegar e escuto um canto de passarinho distante, bem como um toque distante de tambor, como se ela tivesse próxima a uma rara aldeia indígena que sobreviveu ao tempo.

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora