Capítulo 19 - Parte Dois

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— Ok, qual é o problema, Nori? — Chia exige minha atenção.

— Não sei do que você está falando.

A bambina vai para o sofá, acomodando-se entre as duas garotas. Frida para de cutucar o fiapo que tomara sua atenção e foca em nossa conversa.

— Você está fugindo do assunto —, afirma Chia, com seriedade.

Viro para o lado, ignorando o quanto suas rugas de riso ao redor da boca ficam em destaque quando ela não está sorrindo.

— Não tem assunto. A Reserva, Acampamento Cae, ou sei lá o que, está sendo atacado, mandaram-nos ficar em um lugar protegido, e é isso. Fim da história. Não há nada para conversar.

— Você sabe que tem, sim —, retorque, ao inclinar-se para frente. — Não sou a única que está perturbada. E você não precisa fingir que isso não te atinge.

Com um suspiro resignado, aceito que não posso continuar dando respostas evasivas se não quiser ficar neste jogo o resto do dia, e acato o pedido de Chia, atentando-me às suas palavras.

— Não podemos fingir que não vimos o que vimos —, expõe, após um suspiro. — Eu, por muito tempo, vi coisas que não acreditava poderem ser reais. Não sei explicar o que é essa loucura toda, o que é que vimos hoje, mas não posso fingir que está tudo bem, tudo normal e seguir em frente. Sabíamos da existência destes seres quando decidimos ficar.

—E ignorar não resolve problema nenhum —, acrescenta Frida, para minha surpresa.

— Não quero resolver problemas —, devolvo. — Eu não quero é me meter em mais um.

— Minha vida toda eu tive Enzo ao meu lado dizendo-me no que acreditar e que coisas trariam benefícios à nossa família, situações que eu poderia fazer parte para garantir meu futuro —, confessa, com as sobrancelhas franzidas, como se não tivesse sido interrompida. — Mas estou sem ele agora, assim como estou sem Lucca, e, por mais que odeie isso, acho que esta coisa toda que está acontecendo é para que eu pense sobre o que é verdade ou não, sem ter Enzo me guiando. E o que presenciamos há pouco é uma verdade muito maior do que a simples visão de animais selvagens. Sinto que estou mudando por dentro e não posso fazer nada para impedir. Sinto como se meu interior estivesse se partindo.

E eu sinto como se uma tempestade enorme fosse cair sobre minha cabeça, quero dizer, mas fico calada.

Fico calada, fitando a calça de moletom que visto, sem ser capaz de pronunciar uma única palavra.

— Eu nem sempre soube deste mundo —, confidencia Frida, de forma inesperada, contribuindo para o discurso de Chia. Quando ergo o olhar, vejo que ela olha com fixação para um ponto qualquer no carpete. — Jerome me encontrou vagando quando eu tinha oito anos, num beco qualquer da Sexta Cidade. Eu estava imunda, com medo, sozinha e sem memórias.

A história me atinge de modo instantâneo, fazendo com que meus sentidos aflorem. Passo as mãos pelos braços sem notar, para conter o arrepio que me toma.

— Ele me levou para sua casa e cuidou de mim —, prossegue ela, sem reparar em meu desconforto. — Adotou-me e juntos escolhemos o nome que eu teria a partir dali. Um nome novo que vinha com um recomeço. Jerome me contou sobre um mundo desconhecido, cheio de oportunidades e promessas de uma vida melhor do que a que eu parecia ter tido até então. Um lugar que ele chamava de casa e para qual voltaria quando sua missão em Aliança tivesse se completado. Eu implorei para que ele me levasse junto quando fosse voltar. Seria meu objetivo a partir dali. Um recomeço completo longe de meu passado.

Nossos olhares estão presos em Frida, que parece emergir repentinamente de uma onda avassaladora de antigas lembranças.

— É por isso que sei coisas sobre este lugar —, resume, dirigindo-se a mim. Franzo os lábios. — Não estou tentando mentir pra vocês sobre o que sei. É só que eu sei pouco, pois Jerome me contou pouco. América é um nome proibido, mesmo entre aqueles que desejam conhecê-la. Porque aqui podemos encontrar livremente pessoas que se esconderiam em nossa terra natal. Pessoas como as que vimos lá fora.

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora