Capítulo 27 - Parte Um

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A biblioteca está mais fria do que eu me lembrava. O ar gélido penetra meus ossos e congela minha alma. Porém, eu sei que o frio que sinto não é exterior, não vem de fora — meu interior é único inverno que pode me alcançar de verdade.

Depois de uma garantia forçada ao chantagista que se mostrou Daniel de que falarei com ele após o jantar, a curta caminhada até o primeiro andar, onde se localiza a biblioteca, foi uma oportunidade para as vozes em minha mente zombarem de mim, como se estivessem, de fato, aqui.

"Tolinha, sempre tão manipulável", elas dizem. "Fraca, fraca, como uma ratinha de laboratório, como um floco de neve no verão". Eu as ignoro porque é o que posso fazer. Ignoro e sigo meus passos, pé direito, pé esquerdo, pé direito, até meu destino.

Levo-me no automático para o primeiro andar da biblioteca, subindo degraus sem notar que estou abandonando o térreo. Sei que Chia e Sam me esperam no espaço que essa última utilizou para revelar o pergaminho à Penny e eu, junto com as correntinhas que ainda enfeitam nossos tornozelos cobertos.

— Estamos sozinhas?

O que quero perguntar é se estamos seguras para revelações que podem ser muito relevantes. Sam contém-se em levantar e acenar positivamente, de seu lugar perto da janela, e deixar-se guiar por meu caminho, com Chia vindo em seus calcanhares, para a mesa que utilizamos poucos dias atrás. Ambas abandonam os livros que folheavam sem muita aplicação.

Desembolar o traje de Daniel, sem deixar de me sentir incomodada pela cena de poucos minutos atrás, e tirar o não mais tão secreto papel de lá é rápido. Porém, quando o coloco em cima da mesa, o tempo parece parar, assim como os movimentos e a respiração de Sam.

— O que é? — Indaga Chia, tentando ler as palavras, sem sucesso. — E que língua é essa?

— Onde achou isso, Nori? — Balbucia Samantha, numa pergunta sussurrada. — Onde o encontrou?

— Não sabia se tinha algum significado. Deram-me em minha cidade — respondo, sem especificar quem. — Imaginei que você pudesse decifrá-lo, como parece conhecer algumas línguas antigas.

— Sim, sim, eu conheço — diz, distraída.

— Tem algum significado?

A mulher parece não me ouvir ou assimilar o que digo. Está concentrada demais em pegar o pergaminho com delicadeza, acariciar suas formas desenhadas que tanto me assustaram durante todo o período em que as cicatrizes em minhas mãos eram visíveis por completo, correr os dedos pela aspereza de sua superfície. Parando com sua observação minuciosa, como que numa tentativa de validar sua existência, ela abandona a tarefa de analisar as letras, sem parecer lê-las de fato, para erguer a mão que segura o fragmento de papel-pergaminho para aproximá-lo do rosto para... Cheirá-lo?

— Tem o cheiro deles — segreda, como que em transe.

— Samantha, por que está demorando tanto para...

A voz interrompe nosso momento-loucura, tira Samantha de sua inércia e revela nossa falta de privacidade dentro deste recinto público. O pior, entretanto, é ver Astrid parada na entrada da área com os olhos se arregalando em meio a piscadas e uma respiração esbaforida, a boca abrindo e a mão no peito, como se não pudesse acreditar naquilo que vê.

— O enigma!

O grito estrangulado penetra meu cérebro. Por algum motivo, dou um passo adiante, bloqueando sua passagem em nossa direção, forçando-a a pausar a corrida recém-iniciada.

— O que está fazendo, garota? — Cospe, sem saber se foca no que há em minhas costas ou em mim, sua mão hesitando em cima de sua boca, como se não esperasse seu próprio grito. Mas a compostura parece não ser um requisito para ela, que sorri sem humor e diz: — Saia daí agora mesmo!

— Deixe-a, Astrid — repreende Sam, com a expressão voltando à sua calma rotineira. Ela ainda me parece um tanto transtornada. — Nori é a responsável por nos ajudar a encontrar a localização deste pedaço.

Astrid parece surpreendida, e não de uma forma agradável.

— Está me dizendo que ela é uma delas? — Seu olhar em fenda me mede. — Tudo nela é normal, não vejo nada de especial ou utilizável.

— Está olhando num espelho — replico, ganhando uma careta irritada.

— De certo ela o roubou da menina — é o que fala.

Levo cinco segundos para compreender o que ela quer dizer com sua fala.

— Eu nunca roubaria nada de Penny, a mãe dela me deu o papel — asseguro, fitando Sam.

— Não se preocupe com isso, Nori, sabemos que está falando a verdade. Certo, Astrid?

A visão do sorriso da ruiva me dá a certeza de que minha resposta a agradou. É por isso que sei que respondi algo que não devia.

— É claro — contesta, e, com agitação, acrescenta: — Posso levá-lo para Samuel, se tiver muito ocupada conversando com essas duas.

A sugestão feita em meio a sua aproximação concede-me a mesma intensa sensação de mal-estar que tive ao ouvir a conversa no corredor. Arregalo os olhos quando me lembro. A conversa no corredor! O enigma de que eles tanto falavam era o mesmo que eu carregava no bolso. Mas que...

— Não é preciso — respondo por Samantha. — Sam vai nos levar para o refeitório e pode dar para Samuel o enigma, ou o que quer que seja isto, ela mesma.

Chia me encara com uma pergunta muda estampada em sua face, mas foco na mulher que tenta ocultar as ondas raivosas que cintilam em seus olhos tempestuosos. Está claro que eu a irritei ao dificultar seu trabalho que poderia ter sido bem-sucedido. Depois da ameaça de seu marido, tê-la como inimiga não fará uma diferença muito grande, no final.

— Ãhn... Sim, é melhor assim — concorda Samantha, respeitando minha indicação mesmo sem entender. — Pode ir, Astrid. Encontramo-nos mais tarde.

Não há contestações, satisfazendo-me por muito pouco. Deixo que o grunhido da madeira da escada cesse para virar-me de volta para Samantha, ignorando minha amiga por necessidade.

— Tem que prometer que me deixará ajudar — é a primeira coisa que falo. — Não pode me esconder nada, Sam, eu confiei em você e espero que confie em mim.

Em sua expressão vejo uma confirmação de que ela fará o possível. Por isso, submersa em dúvidas e possibilidades que reivindicam todo o meu raciocínio, deixo os questionamentos para mais tarde e sigo-a para o prédio adjacente, com uma Chia intrigada em meu encalço. Agradeço seu silêncio que se prossegue mesmo quando Sam afasta-se de nós um uma despedida acenada para ir para o que quer que seja o lugar em que seu irmão está, tenho certeza de que para compartilhar a novidade. Não me importo com a certeza de que as perguntas virão assim que estivermos sozinhas em nosso quarto.

Passamos por Daniel e Kash quando cruzamos o corredor externo do prédio. Ambos estão encostados na parede, como que esperando alguém, e este último meneando a mão logo que nos vê, colocando-se ao lado de minha melhor amiga e permitindo a posição de seu amigo chantagista ao meu lado.

— Não se esqueça — sussurra-me Daniel, inclinando-se um pouco para chegar ao meu ouvido. — Estarei em sua porta meia-noite em ponto. Sem atrasos.

E passa à minha frente, subindo a escada que nos levará para o salão que é o refeitório.


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