Capítulo 14 - Parte Um

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A luz em meus olhos incomoda.

Coloco uma colher do mingau na boca em uma ação lenta e distraída, para os de fora. Para mim, porém, é um exercício de controle, pois conter o tremor em minhas mãos é difícil e perto de doloroso. Estou agradecida por sentir essas pontadas em minha carne tanto quanto os raios solares que se aconchegam em minha pele após passar pelas dezenas de janelas que ocupam as paredes do espaço.

Penny conversa com Chia em tom de sussurro, e ambas riem. Depois de uma inicial timidez, a bambina acabou por se acostumar com minha amiga. Agradeço por uma entreter a outra. Sou incapaz de me concentrar em conversas por agora.

Acordei pouco depois das sete da manhã, suada e trêmula como vara-verde. Levei duas vezes mais tempo para sair da crise do que quando aconteciam no início de minha estadia em Mônaco. Mantendo uma boa distância da janela, a que foi possível no espaço de três metros de comprimento do quarto, agachei ao lado da longa cômoda, do lado oposto ao da cama, apoiei a cabeça na parede fria e agarrei sem hesitar o casaco emprestado, como se fosse meu bote salva-vidas, deixando-me afogar no cheiro da roupa que, aos poucos, vai sendo substituído pelo meu. Chiara acordou quando minha cabeça já não estava mais enterrada no tecido e meu rosto seco e sem traços das lágrimas derramadas.

Meu conflito interno não é de agora. Meu passado me impede de muitas coisas - dormir era uma delas. Aprendi a lutar com meus demônios na frente das pessoas, porém, ignorá-los em minha própria cabeça. Dormir exausta, pouco, ou até não dormir por um ou dois dias funcionava no começo. Com o passar dos meses, os pesadelos foram parando, os sonhos escasseando e o sono vazio tomou um lugar - que eu acreditava ser permanente - em minha vida.

Gostaria de não ter estado errada.

-... Não é, Nori? - Pergunta Penny, virando-se para mim.

Sentada à minha frente, com Chia ao seu lado, a menina me encara com olhos arregalados em uma expressão doce e infantil. Sorrio para ela, mas não respondo. Não é necessário.

- Ah, esqueci! Fazíamos guirlandas de margaridas silvestres, também. Os dentes-de-leão eram difíceis de arrumar porque eu sempre soprava e não sobrava nenhum inteiro. A mesa ficava cheia de margaridas, cheirando à geleia fresca e flores... - Matraqueia Penny.

Fazendo de conta que não vejo o olhar inquisidor de Chiara, volto a comer, agradecendo o sabor doce do mingau para compensar o amargor do chá sem açúcar que tomo. Se continuar assim, recuperarei bons quilos perdidos nas últimas semanas, dos quais abrimos mão ao investir em nossa "poupança" para a ida à Euro-Ásia, ao invés de usar para a compra de alimento.

- Cuidado, querida -, alerto, quando vejo Penny erguer a mão à faca de manteiga posta entre nós, sem desviar o olhar de Chia. - Pode se machucar.

A garotinha sorri, entrecerrando os olhinhos claros. Ela balança a cabeça em concordância e seus cachinhos dourados se contorcem.

- Ah, Enzo fazia isso o tempo todo -, diz Chia, como que se lembrando de um episódio em particular.

Suas feições tornam-se tristes e ela para de falar.

Sinto uma ruguinha fixando-se no meio de minha testa quando me lembro de Lorenzo. Mesmo sendo, em minha atual concepção, o babaca que me abandonou, Chiara tem razão ao estranhar seu desaparecimento repentino. Ele poderia deixar quem quer que fosse exceto seus irmãos. E, como não parece ter tido opção com Lucca, eu duvido que com Chia fosse proposital.

Por um instante, deixo-me pensar que ele fugiu com os Traidores, mesmo que não faça o mínimo sentido.

Unir-se aos inimigos de Aliança nunca foi ideia minha, ou desejo real, mas era uma grande aspiração para o jovem lutador que Lorenzo é. Seria muito bem sucedido em qualquer exército que o aceitasse, é claro, e a batalha contra o país que nos fez tanto mal lhe parecia aprazível para ser o soldado que almejava ser. Mas eu não quero ter que estar em campo de batalha algum, nunca quis me envolver nessa guerra.

Tinha esperança, porém, de fazer parte de coisas como alimentação, educação, enfermagem ou qualquer posto que pudesse entre os Traidores, algo que não envolvesse lutar. Isso foi o bastante para que eu tornasse nossa ingressão à comunidade indômita um objetivo.

Enganar-me com essa ideia me satisfaria por um tempo, embora não tenha me feito confiar mais nesta ideia. Não sou uma guerreira. E, se depender de minhas vontades, eu nunca serei.

Fugir de Aliança era um meio de fugir da guerra contra a Ásia Ocidental e Central. Mas, as histórias acerca dos fugitivos da antiga Europa e da Ásia nunca foram bonitas ou pacíficas para eu cogitar a ideia de segui-los. Ir com os Traidores era como abraçar a guerra. Apesar disso, eu faria qualquer coisa para sair de Aliança sem ter que correr o risco de ser Recrutada.

Eu tinha descoberto um lugar entre os rebeldes de Mônaco, ao menos, e, mesmo tenho impulsos de fugir, mesmo tentando dissuadi-los da ideia de integrar o país rebelde, iria com eles para a Euro-Ásia, para não perdê-los. Não confiava no plano dele, não neste, mas não os abandonaria. Não como Lorenzo me abandonou.

E não voltaria ao poder daquele exército cruel, mesmo que isso significasse ficar sob o poder de outro.

- Nunca mais... - Sussurro, sem voz.

No fim, não havia me movido -, continuo sem respostas.

E com mais um mistério para resolver.

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