Capítulo 16 - Parte Única

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Respiro fundo, sentindo as palmas de minhas mãos coçando.

- Sentem-se todos vocês.

Mesmo contrariados com a sugestão do homem, todos nos sentamos em sincronia.

Quando estou acomodada na relva verdinha, entre Chiara e uma desconhecida, evitando Frida deliberadamente, ergo o olhar, apenas para encontrar as íris azuis de Daniel presas em mim.

Os olhos, nem arredondados nem puxados, adquirem uma tonalidade mais clara com a exposição ao Sol, como um pedaço do próprio céu. É curioso como consigo notar a forma como os aperta quando se concentra em algo ou alguém, ou pensa, parecendo atento às palavras de nossa guia tanto quanto focado em me encarar.

Sempre sou atraída por um olhar, forçada a fitá-los como se eles pudessem me contar segredos que não poderia descobrir de outra forma, sendo assim não é estranho perceber como fico hipnotizada pela intensidade como me percorre, as pálpebras quase tocando a linha d'água de seus olhos, como se buscasse um detalhe que porventura tenha deixado escapar em nosso encontro da noite passada.

Endireito-me ao me lembrar de noite passada, tanto pela conversa que ouvi e a"discussão" com o rapaz quanto pelo sonho à noite. Estremeço e desvio o olhar, com receio de que ele seja capaz de ver o medo estampado em minhas pupilas.

- Entendo que muitos de vocês estejam confusos ou com medo -, afirma Samantha, pedindo nossa atenção -, e isso não é errado. Poucos têm ideia do que encontraram aqui, do que viveram e do que viverão. São coisas que nem todos tiveram a oportunidade de ver ou conhecer -, suspira, como se não soubesse a melhor forma de abordar o que viria a seguir. Nosso mundo é muito complexo, enigmático, misterioso. É impossível saber de tudo o que há para ver nele, bem como é difícil aceitar que certas coisas são reais.

- Nem eu conheço tudo o que poderia -, acrescenta o homem, como que para ajudá-la e aliviar o clima.

Não funciona.

Minha cabeça começa a doer, minha visão embaça e eu sinto meus dedos tremerem. Escondo-os dentro de minha blusa.

- É por isso que muitos de vocês não entendem certas coisas que acontecem, ou fazem. Mas, algumas das lendas antigas das quais vocês podem ter ouvido falar, contos ancestrais passados de geração em geração nas famílias e aldeias foram criadas para explicá-las.

Engulo em seco sentindo a súbita vontade de sair correndo e gritando com as mãos nos ouvidos.

- Por favor, eu peço que não se exaltem e me deixem terminar. Tirem suas conclusões depois que eu terminar e, se continuarem com suas dúvidas, com o tempo será possível respondê-las -, interrompe-se, para tomar fôlego, sua expressão sem o tom de serenidade ao qual parece sempre aderir. - Nosso mundo tem uma divisão a mais. Poucos de vocês, e das pessoas mundo afora, o conhecem hoje. Muitos tentaram disseminar essa classe, matá-la, destruí-la com guerras e "antídotos", por considerarem doentes aqueles que faziam parte dessa categoria peculiar.

Um ou outro dos adolescentes presentes troca olhares. A maioria não desvia o olhar de Samantha.

- As pessoas que vocês viram lá dentro fazem parte desta classe -, diz ela -, e vocês podem fazer, também. O que importa é... Cada um aqui veio para cá graças a pessoas desta classe, que os acharam, souberam o que aconteceria a vocês e viram em potencial para nosso mundo em seus rostos.

- Por que ela está enrolando? - Um dos garotos pergunta em tom baixo, mas eu o escuto.

De igual modo, a mulher parece ter ouvido.

- Quem são vocês afinal? - Inquiri a mesma garota de antes, em voz alta.

A fala de Samantha cessa e outro suspiro sai de sua boca.

- Nós somos...

- CORRAM!

Em um sobressalto coletivo, todos nós nos levantamos e viramos em direção à voz.

Nos poucos metros que leva para se achegar ao nosso grupo, dezenas de pessoas vão surgindo pelos corredores externos e portas. Seus passos trôpegos, incertos, são acompanhados de gritos incoerentes e, muitas vezes, ininteligíveis.

- Na floresta -, gritou o desconhecido, correndo em nossa direção. - Estão chegando! Chamem Samuel!

- O quê? - A pergunta escapa de várias bocas.

- Que droga é essa? - Müller pergunta, com o cenho franzido.

- Chamem Samuel -, repete, aos berros. - Eles estão chegando!

Entreabro a boca, notando o exato segundo em que posso vê-lo com nitidez, coberto de sangue, roupas rasgadas e face suja de terra.

E, a poucos metros de nós, o rapaz tropeça em seus próprios pés, caindo a poucas palmadas de mim, erguendo-se nos cotovelos.

- Chamem...

Tenta repetir. Abre a boca e...

Desaba no chão aos meus pés.

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