Um a um vai parando. Os primeiros são aqueles que deixamos para trás, depois os do nosso grupo. O ardor em meus músculos se inicia por volta da sexta ou sétima volta. Minhas pernas cansadas pesando, começando a arder com a força que faço para impelir-me adiante, mais para frente, mais longe, até que chego ao ponto de, no fim da oitava carreira, ter que parar. Sean continua por três voltas a mais que todos nós. E ao seu lado, seu solitário acompanhante... Daniel.
O garoto dos olhos azuis entrou depois de mim, é claro, mas segue com força. As pernas longas dão-lhe passadas mais largas, seu peso não parece significar problema. Ele vai e vai, e corre de novo mesmo quando Sean cansou e sentou-se ao meu lado, ofegante.
Observamos como Daniel vai mais uma vez, os sussurros ao meu redor alertando-me que esta será sua nona e décima volta, para, enfim, como dito, ele chegar à linha de partida e cair na margem de nosso semicírculo, o peito subindo e descendo muito rápido, as mãos trêmulas do esforço feito. Vejo-o aceitar uma garrafa de água e derramá-la pelo rosto anguloso, correndo pela linha do pescoço naquele mesmo ponto onde vi a veia bombeando o sangue de seu coração.
Tum. Tum. Tum.
Por um segundo, permito-me admirá-lo. Poucos têm sua resistência para correr tanto sem cair de exaustão depois. Eu mesma não a possuo, tendo corrido um máximo de dois quilômetros nos últimos seis anos, por necessidade, e pouco mais de um e meio hoje, pela falta de prática. Mas, logo que ele localiza meu olhar sobre si e o devolve, com o sorrisinho torto debochado de alguém que acredita ser superior a outro, volto a detestá-lo, pois sei o que esse rapaz representa e o que pode significar em minha história; nenhuma das respostas é aceitável.
A pequena parte de sua personalidade que conheço não é nada bonita.
— Parece que nosso máximo é dois quilômetros completos — Sean diz, colocando-se em pé em nosso meio. — Todos foram muito bem, mas podemos ir melhor. Conversei com Ruby e concordamos que, a partir de hoje, devemos nos levantar às seis horas, para nos encontrarmos antes do desjejum e corrermos ao redor do descampado. Um quilômetro por manhã mais aquilo que conseguirmos fazer durante a primeira hora de treino da tarde.
— E o resto do tempo? — Indaga uma das garotas que se senta ao meu lado. — Temos treino à tarde, eu sei, mas ninguém falou nada sobre a parte da manhã até o almoço.
— Até o almoço, vocês terão aulas com Giulia e Olívia e os trabalhos comunitários que já possuem — explica Ruby, aproximando-se de nós com o grupo um.
Encontro uma loira conhecida entre eles.
Arlet está entre Chia e um garoto novinho com óculos que treme a cada olhar irritado que recebe dela. Sua carranca é enorme ao limpar o suor que escorre por sua nuca, umedecendo a camiseta branca idêntica à que eu mesma recebi e uso. Ela recusa-se a sentar no solo arenoso — e sujo, em suas palavras — conosco e fica em pé fora de minhas vistas. Por algum motivo, acredito que devo ficar de olho nela.
—... Também alguns idiomas de Aliança. — Ruby prossegue com sua narrativa. — E, durante à tarde, estarei esperando vocês para aulas de resistência e autodefesa. Não se atrasem, alimentem-se bem e descansem, pois não pegarei leve com ninguém, independente de quem tenham sido em sua antiga Cidade.
Sua frase é dita em específico para um ponto em nossas costas. Ao que parece, Arlet de fato tem o perfil esnobe e presunçoso da Elite de Aliança.
— Vou dar uma hora livre pra quem quiser ficar por aqui — acrescenta, voltando-se para nós. Seus olhos passam por mim por um segundo, seguindo em frente. — Depois, vão para o chuveiro se arrumar para o jantar.
O caminhar de Ruby é reto e de passos curtos, com Sean andando com ela, mas vejo um ocasional mancar de suas pernas. Ela lança um grito de boas-vindas aos novatos, nós, e sopra uma despedida sem esquecer-se de adicionar o nosso conquistado apelido, "molengas", ao fim da frase. Aceno de volta para o rapaz que abana a mão em nossa direção e levanto-me, puxando Chia no caminho para ir comigo.
— Então... E aquela piscadinha? Eu vi alguma coisa acontecendo ali? — Brinca ela, dando-me um esbarrão, com as sobrancelhas erguidas e um sorrisinho de canto.
Minha curta risada é seguida de uma virada de olhos e uma trombada de retorno, quando pisamos na grama do campo aberto, seguindo para a mansão.
— Como está?
— Morta — afirma ela, bufando. — Não me peça para separar as mãos mais que cinco centímetros do meu corpo porque eu estou impossibilitada de fazer isso.
Eu sorrio, balançando a cabeça. Meu pé está formigando e minha boca tem gosto de areia, sal e suor.
— Você, ao contrário, parece muito bem — comenta, arrancando-me um sorriso sincero.
— Correr é incrível. É como estar em casa de novo — confesso.
— É. Não me lembro de te ver fazendo outra coisa que não fosse correr em nossas missões.
A palavra final é sussurrada em meio a seu inclinar em minha direção, mesmo que estejamos sozinhas, distantes por muitos metros de qualquer um. Em resposta, eu esboço um sorriso; minha fala não se referia a Mônaco, mas eu não diria isso para Chia.
Continuo calada, sem poder projetar reação.
Meus pés tocam o paralelepípedo que forma o caminho das laterais da mansão, guiando-nos em silêncio para a parte interna pelo lado onde tem a entrada do refeitório. É quando pisamos no chão de pedra do saguão de entrada, cruzando a entrada do hall de circulação, com a visão do Mar sendo o que ocupa a linha reta da entrada seguindo, que eu sinto uma forte pancada em minha cabeça, como um soco que me cega por instantes, me paralisa por minutos, amarga minha língua e faz arder minhas pálpebras. A sensação que tenho é a de estar em um impasse incompreendido e inexplicável, entre ignorar ou revidar a batida — mas não é um golpe físico para que eu possa fazer algo mais que torcer para que seja nada mais que impressão.
— Estou com um pressentimento ruim — digo, sem notar que paramos.
— Por quê? — Indaga, chamando-me a atenção. — De quê?
Nego com a cabeça, sem saber o que pronunciar para explicar o que sinto.
Nos piores momentos possíveis, vejo-me incompetente com as palavras, inábil com as letras e inabilitada em formular respostas mais complexas que um tolo dar de ombros ou um assentir irrequieto.
— Só acho que devemos ficar de olho no que acontece ao redor — é o que digo, pois não há o que falar.
Chia fita com a boca torcida quando dou passos hesitantes adiante, mas dá de ombros e volta a caminhar ao meu lado, brincando com uma mecha de cabelo. Seus ombros perdem a tensão a cada passo, como se seu cérebro estivesse-a convencendo de que não há motivo para preocupações. O problema é que eu sei que há. Não ignoro meu instinto à toa. Chia também não o fazia.
Disfarço um grunhido ao sentir o mesmo amargor de um pressentimento ruim afogar meu paladar.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...