Desperto no susto.
Dou impulso para frente, cuspindo todo o líquido salgado que tentaram enfiar goela abaixo. Tusso para expelir o que resta em minha boca, entretanto o ardor em minha garganta comprova que eu engoli boas goladas antes de eu conseguir acordar. Mãos suaves dão batidinhas em minhas costas, mais como um carinho do que como uma ajuda. Contenho um grunhido irritadiço, e deixo que as palavras "esses golpes só estão atrapalhando o trabalho dos meus pulmões" morram em minha língua.
Quando minha crise de quase afogamento passa, e minha garganta ultrapassou o lastimável estado de carne viva, eu deixo de tentar expelir o pequeno oceano que deve estar em meu estômago.
— Hey — chamam-me, quando recosto-me no leito que me foi oferecido sem que eu notasse.
Não faço a mínima ideia do que aconteceu. Minha lucidez permite que eu capte que não estou mais no refeitório, que desmaiei, e isso é tudo.
A aparência branca e sem graça da enfermaria desde a vez que estive aqui, para fazer os curativos de minhas mãos — agora curadas — não mudou nada. As mesmas macas de ferro branco enfileiradas, a mesma cor sem cor em todos os cantos, o mesmo piso encerado com um fraco aroma de desinfetante e a mesma enfermeira, calada e séria, que passa por minha cama para conferir, com uma desconfortável luzinha, meus olhos e garganta. Com uma fala para Sam, a dona das mãos que me "ajudavam" a botar a água para fora, ela se retira, deixando-nos a sós.
— Quanto tempo eu fiquei apagada? — É minha primeira pergunta.
Estou sentada com as costas apoiadas no travesseiro macio, mesmo que queira sair correndo porta afora. Estar em meio ao conforto de lençóis não é meu ideal de recuperação; estaria me recuperando na floresta, rondando nosso abrigo, se estivesse em Mônaco. Cada célula e micropartícula de meu corpo imploram por ar, para que eu saia e respire tudo, menos o sal que, tenho certeza, foi forçado por minha garganta assim que perceberam o incompreensível efeito que este mineral tem sobre minha incomum e bizarra alergia. Faço uma careta.
— Um dia. — Quem responde é Samantha, que deposita um copo com o líquido salgado sobre a mesinha mais próxima. — Acredito que o jantar já deva estar acabando.
— Fique muito feliz, Nori — diz Chia, tentando aliviar o clima. — Você ganhou um bônus de, além de não ter que comparecer às atividades desta Sexta, ter todos os trabalhos coletivos de Sábado suspensos.
Sorrio para ela, um sorriso que se transforma em careta quando noto o quanto mexer a boca dói.
— Por falar nisso, não perguntei o que estão achando da Reserva — fala Sam, em tom sugestivo, mudando de assunto graciosamente ao notar meu incômodo. — Já se passaram quantos dias?
— Agora, doze dias aqui — é Chia quem diz.
— Acostumaram-se? Estão gostando?
— Fora o fato de ter que ficar longe do Mar, o que não é sacrifício, só estranho, de não poder me aproximar dos arredores da floresta, o que também não me incomoda, e de estar, basicamente, dentro de salas distintas falando sobre respiração, controle das emoções e plena conectividade com meu eu interior — Chia esconde uma risada numa tosse, enquanto continuo a falar — eu estou achando bom. Mesmo que seja muito esquisito andar ao lado de pessoas que me fazem ter a impressão de que em um instante virei elas se transformarem num tipo sinistro e desconhecido de animal que pularão pela janela mais próxima.
Chia arregala os olhos, como se me repreendesse, mas Sam dá risada, sem se importar com o comentário.
— Sei como é — afirma, para minha surpresa. — Quando fui trazida por Samuel para viver na Reserva, eu não queria fazer parte dos treinos físicos, como você. Era muito difícil e eu me sentia num manicômio onde me faziam entrar em contato com uma voz interna que não existia. Acostumei-me quando aprendi o significado disso.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...