Deviam ser três da tarde quando eu finalmente terminei de lavar as louças do almoço. Quarenta crianças, sete funcionários, três cozinheiras, diretora e faxineira. Não era atoa que eu levava duas horas para lavar tudo. Eram muitos pratos.
Encarei a janela de frente para a pia e vi todas aquelas crianças brincando no sol lá fora, no jardim.
Eu não gostava daquele lugar. Era tudo bem cuidado, limpo, tinha parquinho, sala de jogos, biblioteca, tudo que uma criança precisa para crescer bem. Os funcionários eram gentis, a diretora muito bondosa e todos agiam como se fossem uma verdadeira família. Era o melhor orfanato da cidade com relação a estrutura e ensino. Mas eu detestava aquele lugar pelo único motivo de eu ter crescido lá.
Eu nunca conheci os meus pais, não tenho ideia do que aconteceu com eles, se morreram, se não puderam me criar, ou se só não me quiseram mesmo... Eu não sei, e com o tempo até parei de pensar nisso. Mas, ainda assim, me sentia presa ali.
Eu já tinha 18 anos agora, o que significa que eu nunca fui adotada. Nunca tive uma família de verdade. Mãe, pai, irmãos... Nem sequer primos. O único motivo por eu ainda estar ali foi que eu não consegui passar para a faculdade.
Eu estudei muito, me esforcei o máximo que pude, mas não tive nota suficiente para ganhar dos meus concorrentes, então... Não passei. Também não consegui emprego fora daqui para poder alugar minha própria casa ou apartamento. Sendo assim, a diretora me deixou ficar e trabalhar aqui.
A única coisa que eu preciso fazer é lavar a louça mesmo, não que seja pouca coisa, tenta lavar cinquenta pratos, talheres, copos e panelas todos os dias, do almoço e do jantar sozinha. Sem contar com secar e guardar todos.
Eu também já tinha me formado da escola, então, não tinha tantos amigos agora, já que a maioria dos órfãos são crianças de até 12 anos.
ㅡ Eu terminei de ler aquele livro! ㅡ April chegou na cozinha com os olhos borrados de rímel.
ㅡ Eu falei que você ia chorar. ㅡ Ri secando as minhas mãos no pano de prato. April era praticamente a minha única amiga ali, ela também ia fazer 18 anos em breve, mas a diferença entre nós é que ela é super inteligente e foi aceita em três universidades de ponta. Já tem dormitório e tudo certo para ela ficar quando sair daqui.
ㅡ Você disse que eu ia chorar, não que ia sair com depressão. Quando o Axel... ㅡ Ela respirou fundo tocando seu peito. ㅡ Arg... Não gosto nem de lembrar. Ainda bem que ficou tudo certo no final. Eles são tão lindos... ㅡ Ela se escorou no balcão ao lado da pia e sorriu abraçando o livro. ㅡ A gente bem que podia viver uns romance desse né, Arizona?
ㅡ Você vai. ㅡ Ri puxando a cadeira da mesa para me sentar. ㅡ Daqui uns dias você vai para a faculdade, vai fazer novos amigos, vai frequentar festas, com certeza vai conhecer algum cara gato por lá e vai ter o seu romance.
ㅡ Ai, que Deus te ouça, amiga! ㅡ Ela deu uns pulinhos. ㅡ Mas, e você? Você também pode viver um romance.
ㅡ É? Com quem? ㅡ Arqueei uma sobrancelha. ㅡ Eu nem saio daqui.
ㅡ Ué, mas você pode. Não sai porque não quer. Pode ir à cafeteria, ao shopping, ao parque. Pode conhecer alguém. Não vai conhece-lo aqui nessas paredes. ㅡ Ela cruzou os braços colocando o livro de lado. ㅡ Ou está esperando que ele caia do céu ali no jardim?
ㅡ Poderia acontecer. ㅡ Dei com os ombros e ela riu. ㅡ Mas, eu não tenho tempo para ficar saindo. Eu preciso estudar, a segunda chamada para o vestibular vai ser em breve e eu preciso passar. Quando eu estiver na universidade posso me preocupar em encontrar o amor da minha vida.
ㅡ Bem, você quem sabe então. Mas, por enquanto, podemos ficar com os crushs literários mesmo. ㅡ Ela pegou o livro novamente e o balançou com um sorriso.
ㅡ Vamos na biblioteca procurar novos crushs?
ㅡ Óbvio! ㅡ E assim fomos as duas na direção da biblioteca do orfanato. Como eu disse, o lugar tinha uma estrutura ótima, e isso conta com uma biblioteca bem grande. As crianças não passam muito tempo ali, então eu e April temos liberdade para irmos sempre que queremos.
Nós duas éramos apaixonadas por livros de romance. Sempre líamos um atrás do outro. Gostávamos de imaginar que isso um dia poderia acontecer com a gente. Eu nunca tinha me apaixonado, obviamente, pelo menos não por algum cara real, porque por literários eu já tinha me apaixonado várias vezes. Eu já senti borboletas, de verdade, mas por personagens literários. Sou do tipo que até suspira de amores quando o casal da o primeiro beijo.
Sempre me perguntei como seria o meu primeiro beijo. Infelizmente, a autora que escreve a minha vida amorosa deve ter tirado férias ou algo do tipo.
ㅡ Ok, eu já escolhi o meu próximo. ㅡ Ela balançou o livro com o título de As Regras do Amor.
ㅡ Eu já li. Você vai rir demais. ㅡ Falei enquanto passava o dedo pelos livros de romance.
ㅡ Você já leu todos os romances existentes nessa biblioteca assustadora. ㅡ April resmungou. Ela vivia dizendo que tinha medo dali, já que era tudo bem antigo.
ㅡ Isso não é verdade.
ㅡ A parte de que você já leu tudo ou a parte do assustadora? ㅡ Ela arqueou uma sobrancelha.
ㅡ As duas. O que tem de assustador aqui? ㅡ Ela deu com os ombros e começou a folhear o livro que tinha em mãos. ㅡ E eu não posso ter lido todos. Se não, o que vai ser da minha vida amorosa? Eu só tenho ela nos livros.
ㅡ Podia existir um livro mágico que trás os personagens a vida. Igual aquele filme com Dylan Minnette, que os monstros saem para fora do livro e acaba com a cidade. Imagina se o Axel sai daquele livro? Me perdoa, Nancy, mas eu ia agarrar ele. ㅡ Ela falou me fazendo rir.
ㅡ Ou algum livro que te leve para dentro dele. ㅡ No momento em que terminei de falar, um livro caiu de uma estante no fim do corredor. Ambas olhamos na direção dele, mas quando voltei a olhar para April, ela já estava perto da porta.
ㅡ Eu to vazando desse lugar. Tchau, Arizona! ㅡ E assim ela saiu.
Balancei a cabeça rindo e fui na direção do livro que tinha caído. Sua capa, que estava bem gasta, era de um tom marrom quase bege, bem desbotado. As beiradas estavam amassadas, a lombada bem quebrada e não havia nada escrito na capa. Eu nunca tinha notado aquele livro. Os livros daquela biblioteca, por mais que sejam alguns antigos, eram sempre bem cuidados. Aquele parecia bem deslocado ali.
Olhei para o buraco que ele deixou na fileira de livros, mas tudo que vi foi poeira.
Na minha cabeça aquilo era um dicionário, ou algo antigo sobre o orfanato. Quem sabe algum registro.
Acabei ficando curiosa e abri o livro.
•••
Continua...
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Sobrevivendo ao meu Clichê I
RomancePRIMEIRO LIVRO DA SÉRIE MONTGOMERY E se você tivesse a oportunidade de entrar num livro de romance e conhecer sua própria autora? E se essa autora fosse uma garota super indecisa que estaria ali para escrever o SEU romance? E se, como num passe de...