IX. Uma casa de chá no centro

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Os dias eram sempre calmos na casa de chá do tio Iroh. A água que jorrava da fonte de bambu produzia um som relaxante e as luzes baixas não agrediam os olhos. Tudo era arquitetado para fazer os clientes se sentirem em casa, e Zuko sabia que tio Iroh também pensava em todos os aspectos espirituais do ambiente e do cardápio. O chá, por sinal, era delicioso. Ele tinha que ser.

Zuko levava uma vida simples desde que o pai havia sido preso. Não foi fácil ter o tapete puxado de seus pés, mas ele ficou mais aliviado que qualquer outra coisa. O seu pai não era uma boa pessoa. Havia um motivo para a mãe de Zuko ter ido embora tão depressa e deixado os filhos para trás. Ele se sentiu extremamente magoado e abandonado, mas compreendeu. A mãe o levaria consigo se pudesse. Sua única lamentação era não saber onde ela estava agora.

Eles perderam tudo durante o escândalo de corrupção, mas tio Iroh permaneceu de pé. Há muito tempo, o velho tinha abandonado os negócios e a política, focando ao invés disso em evolução espiritual ou algo do tipo. Zuko já morava com ele desde que havia sido deserdado e, com o dinheiro que obteve trabalhando na casa de chá, conseguiu ir para a faculdade. Tio Iroh ajudava, é claro, mas considerava importante que o sobrinho aprendesse a ter responsabilidade financeira. O mundo não cairia aos seus pés e ninguém devia nada a ele só por causa do seu sobrenome.

Já era o último ano de Zuko na faculdade de administração, e antigos sócios do pai começaram a abordá-lo. Queriam que ele tocasse os negócios da família. Ele precisava pensar no que queria fazer. Tio Iroh concordou que o dinheiro faria bastante diferença na vida dele, e que a administração de Zuko não precisava repetir os erros do pai, mas ele também não queria viver sob aquela sombra terrível. Era como uma mancha em sua vida.

Além disso, havia uma outra sombra pendente na vida de Zuko: ninguém sabia o paradeiro de Azula.

No começo, Zuko sentia tanto ódio da irmã que desejava mesmo que ela nunca mais cruzasse o caminho deles. Depois, quando a raiva foi diminuindo, ele começou a se preocupar, sem saber se ela sequer estava viva. Tio Iroh era quem estava mais miserável com a situação. Ele lamentava o relacionamento ruim com a sobrinha e sua incapacidade de protegê-la. 

Azula parecia ter nascido com uma veia cruel, mas sua saúde mental frágil se rompeu como uma barragem durante a queda do pai. Ela tinha crises que Zuko não compreendia e até mesmo ressentia. Ele chegava a ter medo da irmã. E então, sem mais nem menos, Azula sumiu. Quatro anos passaram devagar, como se fossem décadas. Zuko mal lembrava da vida que um dia levou, em um casarão grande com uma família quebrada.

— Zuko, temos clientes. Pode atendê-los? — Pediu Iroh com o tom gentil e paciente de sempre.

Zuko recolocou o avental e foi até o salão da casa de chá. Ele se deparou com um rosto familiar. Mai estava usando uma longa saia vermelha e plataformas pretas com curtas meias brancas. Ela também trajava um casaco kimono, preto e estampado, com uma bolsa carteiro atravessada em seu torso. O rosto pálido de Mai estava tingido por um tom rosado que a fazia parecer mais sadia. Ao lado dela, uma garota que Zuko não conhecia prendia as mãos atrás de si. Ela tinha o cabelo castanho preso em uma longa trança e um rosto de feições arredondadas.

— Bom dia, Mai. Quem é sua amiga?

Mai virou-se para a outra garota, seus olhos quase cobertos por sua franja reta negra e volumosa. Ela respondeu a Zuko com sua voz monótona de sempre:

— Essa é a Ty Lee. Ela é nova na cidade. Estou apresentando ela a alguns lugares.

— Bom dia! — disse a garota, acenando para ele com entusiasmo — Você deve ser o Zuko, certo? Ouvi falar muito sobre você.

Mai tossiu e deu uma cotovelada em Ty Lee, antes de indicar um local para ela se sentar. Zuko era especialmente tímido com pessoas novas. Ele agradecia muito que a maioria de seus clientes fossem regulares.

— Fiquem à vontade. Quando estiverem prontas para pedir, é só avisar.

Ty Lee olhou ao redor com admiração. Ela parecia ser uma pessoa que se empolgava fácil, além de muito extrovertida. Zuko desmaiaria na presença de uma pessoa daquelas por muito tempo. Mesmo assim, ela formava um contraste interessante com Mai, que, como Zuko, não era muito boa com interações humanas.

— Vocês são uma dupla esquisita — disse ele enquanto anotava os pedidos das duas.

Mai ergueu uma sobrancelha e Zuko gaguejou.

— Não quis dizer que vocês são esquisitas. Digo, vocês são muito diferentes. Não de uma forma ruim, só... inesperada.

Ty Lee riu. Ao menos uma delas não parecia estar ofendida.

— Ele é fofo quando se atrapalha com as palavras, não é, Mai? — ela disse, como se Zuko não estivesse bem ali — A Mai foi um amor comigo. Eu tava perdida no campus e ela me ajudou a achar minhas salas. Somos melhores amigas agora.

— Isso é o que ela diz — disse Mai, tentando ignorar os dois.

Zuko ficou suficientemente constrangido e se retirou para preparar os pedidos. Tio Iroh, por outro lado, parecia se divertir com cada interação social torturante do sobrinho. Nas palavras dele, era orgulho de ver o menino fazer amigos, mas Zuko desconfiava que o velho apenas achava engraçado ver ele sofrer.

— Aqui é muito legal. Tenho uma amiga que talvez gostasse de vir aqui — Ele ouviu Ty Lee comentar com Mai à distância.

— É mesmo? Já está traindo nossa amizade? — Mai implicou um pouco. Seu sarcasmo não era muito diferente da sua voz normal para quem não estivesse acostumado com ela.

— Não, não — Ty Lee estirou a língua — Mas até que vocês duas são parecidas. Ambas são assustadoras.

— Eu sou assustadora? — Mai fingiu surpresa antes de retornar à expressão entediada de sempre — Que bom.

— Ela trabalha num estúdio de tatuagem em frente à minha floricultura. Talvez você devesse conhecê-la — Continuou Ty Lee — Por outro lado, talvez vocês terminassem se matando.

Zuko colocou as pérolas de tapioca no fundo dos copos. De alguma forma, a conversa prendeu sua atenção.

— Por que diz isso? — Mai ficou curiosa.

Ty Lee deu de ombros.

— Talvez por serem parecidas, sei lá. Ela é meio hostil com pessoas novas. Não foi fácil me aproximar.

— Tá insinuando que eu sou hostil com pessoas novas?

— Você é!

— Eu sei, mas não precisava dizer!

Zuko sorriu enquanto derramava o chá. Ty Lee deu uma risada.

— Ela estuda na nossa universidade? — perguntou Mai em seguida.

— Creio que não. Parando pra pensar, eu não acho que a Azula faça faculdade.

De repente, o tempo congelou ao redor deles. Zuko viu o chá derramar em câmera lenta e quase parar no ar. Ele sabia, sem olhar, que Mai também havia prendido a respiração. Talvez fosse outra Azula. Não tinha como aquela Azula estar ali, naquela cidade. Ela nunca voltaria. Por outro lado, a descrição parecia bater. Zuko nem percebeu que estava tensionando o queixo. Ele olhou para tio Iroh, que o encarava de volta, boquiaberto. Estavam se questionando a mesma coisa.

— Azula? — Mai finalmente cortou o silêncio com um tom de desdém atipicamente nítido em sua voz.

Ty Lee estava completamente perdida.

— O que foi? Eu disse algo de errado?

Zuko resolveu cortar a tensão antes que ela aumentasse. Ele não queria descobrir tão cedo se estavam pensando na mesma Azula, então era melhor trocar o foco.

— Aqui estão seus chás.

Mai olhou para ele com uma expressão nervosa e preocupada. Ele tentou acalmá-la com uma troca silenciosa de palavras através do olhar. Ainda não era o momento de tocar naquela ferida.

— Obrigada — Agradeceu Ty Lee, e finalmente o momento se dissipou.

Zuko voltou para atrás da bancada, e tio Iroh se aproximou para colocar uma mão em suas costas. Eles precisavam saber. Eventualmente.

A Serpente em meu JardimOnde histórias criam vida. Descubra agora