Capítulo 50

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O clima desconfortável apenas piorou depois que Dener se retirou. Eu me senti um animal deixado para abate. 

— Caralho, como é bom quando alguém faz merda e não é você! — Dominic comentou em meio a um sorriso convencido.

Ótima boca para socar.

Mas a parte racional do meu cérebro sequer me deixa ser uma vítima injustiçada. A verdade é que eu não havia pensado nas consequências, entretanto, não pensar nelas não evita que elas venham.

A explosão de Ava, a irritação de Dener, a satisfação de Dominic e a chateação de cada um nessa mesa são minhas consequências.

Com as mãos suadas e unidas em cima da mesa, estava Yan, desconfortável e, provavelmente, tomando para si os meus sermões.

— Eu... — eu comecei, mas minha garganta seca me barrou sem delicadezas.

Sem delicadeza e sem confiança para dizer nada, como eu poderia? Mesmo assim, eu insisti.

Merda! Esse lugar esquentou?

— O Yan não teve nada a ver com-

— Não! — meu amigo foi quem me interrompeu dessa vez. — Você não precisa fazer isso, Josie! Eu tomei decisões também e tomaria de novo!

Eu queria ficar feliz pela firmeza em sua fala, mas tudo que eu consegui foi um suspirar aliviado.

— Certo... — eu sussurrei.

E é chegada a hora de eu calar a boca. Porque não importa o que eu diga o rosto deles endurece cada vez mais, como se tudo não passasse de uma baboseira.

Bom, talvez eu tenha contribuído para danos consequentes e, por isso, apenas por isso, eu me arrependo. Se eu sequer tivesse imaginado seria diferente, não seria?

Merda. Talvez fosse melhor se eu não tivesse voltado.

Um toque sutil na minha mão me fez retomar a consciência.

Josh, uma criança, tentava me acolher e tranquilizar enquanto escondia o olhar assustado da conversa nada pacífica de segundos atrás.

Ele estava ali o tempo todo, parado e com aquela mochila enorme nas costas. Sequer me restou coragem suficiente para sustentar o olhar de meu irmão por muito tempo, mas lhe lancei um pequeno sorriso antes dos meus pés rapidamente me levarem em direção à porta dos fundos.

Sim, é de Hyelim que eu preciso agora.

— NÃO! JOSEPHINE! — gritos urgentes e apressados soaram pelo refeitório, mas não foram rápidos o bastante para me parar.

Assim que a porta foi aberta, meu nariz foi invadido por um fedor insuportável, denso. Eu senti ele entrar pelas minhas narinas, se espalhar pela minha face e descer pela minha garganta, ardendo, mas meu corpo o quiz fora e a ânsia veio forte.

Eu o senti penetrar meus pulmões, forçando-os ao fadado costume e fazendo meus olhos chorarem, embaçando minha vista antes mesmo que eu pudesse enxergar o que emanava todo esse fedor.

O pequeno espaço nos fundos da escola, onde nós deixamos os nossos descansar, estava tomado por montes desordenados de cadáveres.

A terra que existia no chão mal era vista, assim como os túmulos feitos ali. Os corpos pareciam grudados, bem encaixados, como uma madeira pálida. Como um novo nível feito do chão, feito por carne humana podre.

Imaginar o rosto agoniado e sufocado de Hyelim me fez recuar e, ao sair da linha da porta, eu deixei que ela batesse.

Mas meu corpo não sabia o que fazer ao se sentir mais pesado. Eu estava congelada, mais uma vez.

— Estão aí só por enquanto... — Haven explicou ao surgir do meu lado.

— Mas que merda é essa? — eu sussurrei com a boca seca.

— É só por enquanto! — repetiu ela, já impaciente.

— Não deveriam nem estar aí! Haven! Esse lugar é...

— É! — ela me interrompeu. — Ele é mesmo! E não é só para você, Josie, mas eu já disse que é só por enquanto!

Eu continuei recuando, tentando fugir do cheiro impregnado no meu nariz e de uma possível discussão que se iniciaria, eu balancei a cabeça.

— Nós vamos cuidar disso e eles vão para a parede! — completou Haven, banalmente. 

Uau! Como isso ficou assim tão rápido? Como eles viraram apenas corpos? Quando eles viraram apenas corpos? 

— Você parece incomodada, Josephine — a loira observou. — Quer externar?

Não, seria a resposta, mas eu não disse nada. E, como se aquele fedor tivesse liquidificado meu cérebro, eu mal conseguia pensar.

— Olha, eu também não gosto disso, está bem? — ela continuou. — Ou você esqueceu que pessoas importantes para mim estão ali também?

— Pessoas importantes para muitas outras pessoas estão ali, Haven — eu disse e sorri em reflexo, talvez na tentativa de amenizar a verdade bruta da frase, ou engolir o choro.

Mal posso evitar o sentimento de inutilidade. Como um copo de plástico velho e desgastado é inútil para aparar a água corrente de uma cachoeira. É quase uma piada, algo tão pequeno e fraco se metendo no fluir de algo tão grande e forte, é estupidez em seu mais elevado estágio.

— E todas elas vão nos ajudar a sobreviver, Josephine! — Haven facilmente explicou.

— Você não vê que isso nem está funcionando? Se esse lance de "camuflar" estivesse funcionando,  nós não teríamos passado por metade dessas invasões! — eu rebati, mas Haven lentamente negou com a cabeça.

— Nossa! — a voz irritantemente sarcástica de Dominic revirou meu estômago vazio. — Que péssimo entretenimento, sério! Não dá para pular a DR?

— Dá — Yan respondeu sua pergunta retórica, tomando a frente de Haven. — Você precisa comer, Josie!

Yan tem razão. Eu não consigo lembrar a quanto tempo eu não como uma refeição, se é que isso pode ser chamado assim, mas meu estômago estava trancafiado pro odor que eu senti a alguns segundos atrás.

— Eu não estou com fome...

— Está sim — ele disse rigidamente. — E você vai estar enquanto tem comida, deixe para se sentir satisfeita quando não tiver o que comer!

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