Gift sentiu o cheiro de seu pai, mas não se levantou da cama em que estava. Ele ouviu seu pai arrastar um banco do outro lado das grades e se sentar, Gift o ignorou.
E ficaram assim um bom tempo até que seu pai suspirou e disse:
"Se eu demorar mais, sua mãe virá. Eu tinha esperança de resolver isso antes que ela o visse aí."
"Noah e Bravery não vão prestar queixa. Fury e Tiger sabiam que eu tinha acabado de acordar de uma violenta sedação, eu não estava raciocinando direito, então, vão acabar me soltando."
"Noah prestou queixa." Seu pai disse, Gift se sentou de uma vez, seu pai se assustou. Ninguém devia ter contado que Honest, ou Candid como Gift pensava, tinha raspado a cabeça dele.
"Cadê o seu cabelo?"
"Pergunte a Honest. Ou a Candid, eu acho que era ele que estava no hospital." O pai de Gift rosnou.
Seu pai tinha uma estreita relação com seus cabelos, ele era um dos que mantinham os cabelos bem compridos, chegando à cintura. Nos tempos de Mercille, eles raspavam as cabeças dos machos e isso causava cicatrizes, afinal, os técnicos usavam isso como uma forma de humilhação e tortura. Seu pai tinha uma inteligência incomum e não foi nem uma nem duas vezes que algum dos médicos quis que ele realizasse alguns exames, mas ele não quis. Quando ele, mesmo estando totalmente vinculado à mãe de Gift, foi morar com Breeze, algumas pessoas se lembraram das cicatrizes. Quem contou isso a Gift foi o padrinho dele.
"Eu serei julgado pelo conselho?" Gift perguntou, não querendo entrar em desespero. Noah via o futuro, se ele prestou queixa, haveria um motivo.
"Ainda não sei. Seu padrinho está em reunião com eles, talvez nem aja julgamento." Seu pai respondeu.
Gift se lembrou da Quase Batalha, um evento que entrou para a história deles. Os trigêmeos levaram Celina, depois de ter sido condenada a Fuller, para uma montanha e ficaram até que o Conselho liberasse James.
Nenhum oficial de Homeland conseguiu subir a montanha por causa da toxicidade de Marble, que intoxicou o lugar. O Conselho liberou James, eles voltaram para a Reserva, Simple se ofereceu para cumprir a pena de Celina e a de Marble.
Agora, Gift estava numa situação bem pouco semelhante a de Celina, uma vez que se o condenassem seria por ele ser culpado. Gift usou seu veneno em Noah, ele só não morreu por causa de Honest e Candid. Ele nunca esperaria que algum macho estivesse disposto a desafiar o Conselho por ele. Se fosse condenado, talvez nem receberia visitas. Não, sua família iria visitá-lo. Só eles. Pelas duas horas habituais, sem fornecimento de comida do refeitório. E ele estava bem com isso. Ele não era um Pop Star como Simple, nem gostaria de ser.
"Eu aceito cumprir a pena que escolherem, só peço que eu possa ver Harmony, só isso."
"Você aceita? Assim sem mais nem menos? Sem pensar no sofrimento de sua mãe, no meu, ou no de seus irmãos?"
Gift ergueu uma sobrancelha. Sofrimento? Será?
"Eu só vou estar em Fuller. Se fosse fazer uma faculdade presencial, eu demoraria muito mais. Até mesmo o treinamento da força tarefa pode ser mais longo." Gift disse. Seu coração no entanto batia dolorosamente. Ele nunca ficou longe de sua família. E havia Harmony. Mas se começasse a considerar o que ser mandado a Fuller lhe acarretaria, ele iria pirar e Gift não pirava.
"Fuller não é uma faculdade! Você se escuta?"
"Eu sei que não é. O que quer que eu diga então, pai? Que eu chore e te peça para implorar ao Conselho? Para que você peça ao meu padrinho para usar sua influência?" Ele disse.
Seu pai passou a mão por seus cabelos, ele parecia muito incomodado com o visual novo de Gift, Gift só se preocuparia se Harmony o achasse feio, se ela não se importasse, ele não ligava. E algo em seu coração lhe disse que Harmony não iria rejeitá-lo por causa de uma coisa boba como uma cabeça raspada.
"Quando se vinculou à mamãe, você sentiu que a conhecia? Você sabia como ela reagiria em algumas questões? Você sentia que a conhecia mais que a si mesmo?" Ele perguntou, seu pai sorriu.
"Eu me vinculei a ela ao sentir seu cheiro num lenço. E sim, a força e a bondade dela me inundaram. Eu mal pude esperar para colocar meus olhos nela e saber se o que eu sentia era real." Ele disse, Gift concluiu com um sorriso:
"E era."
"É. Era. E todo o dia eu descubro algo novo na essência dela, uma faceta, às vezes até uma contradição. E então meu coração me mostra que não é uma descoberta, que eu e ela somos um só de tal forma, que aquela faceta era minha, não dela."
"Eu não estou menosprezando vocês, pai. Eu nunca faria isso. Mas você mesmo me ensinou a arcar com as consequências de meus atos. E ninguém me fode!" Gift disse. Seu pai se levantou.
"Eu não te ensinei isso. Não te ensinei a bater em seus amigos, os poucos que você tem. Também não te ensinei a machucar a fêmea que você ama."
Gift baixou a cabeça. Ele alisou sua nuca, o desgraçado do Candid, raspou sua cabeça na lâmina zero.
"Eu não estava no meu normal. Eu nunca faria mal a ela. E eu nunca exalei veneno antes."
Gift se levantou muito confuso, sentindo o cheiro de Harmony na cama ao lado da sua. Ele inspirou procurando por ela e a localizou no jardim do hospital com Honest ou Candid. Na mesma hora, a raiva o tomou, pois não importava com qual deles ela estava, Gift o ouviu dizer que ela o acalmava. Depois Harmony falou em acasalamento. Isso foi suficiente para ele sair arrancando os acessos e correr nu pelo hospital, a cada passo, sua raiva aumentava. Honest, ou Candid falou em acasalamento quente, Gift se sentiu queimar de ódio e aí quando chegou as portas de vidro, o idiota falava sobre o cheiro de excitação dela. O cheiro delicioso que só ele, Gift deveria sentir, ninguém mais. Agora, tantas horas depois do ocorrido, Gift achava que não conseguiria fazer aquilo de exalar veneno de novo, nem queria.
"Você é algo desconhecido, Gift. E o desconhecido desperta medo. Darkness sempre foi mortal, mas como nunca passou dos limites, mesmo todo mundo sentindo a aura violenta que o envolvia, ninguém se afastou dele. Mas você envenenou Harmony, Honest, Fury e Tiger. Você nem mesmo tocou nela! E bateu nos seus amigos mais próximos. Ninguém confia em você agora."
Seu pai disse com tanta tristeza nos olhos que incomodou Gift. Confiança era algo intrínseco dos Novas Espécies. Um Nova Espécie que não inspirasse confiança era considerado doente ou anormal. Até os machos mais selvagens da Zona Selvagem eram de confiança, obedeciam as regras. Gift se lembrou de Hills e seus cachorros indo morar tão longe por que Tomate era muito bravo. Hills não tinha um intelecto normal, ele mal falava direito, mas ainda assim todos confiavam nele. Em sua lápide sempre haviam flores. Ele marcou todo mundo com seus sorrisos e seu olhar meio confuso. Gift era invisível, agora não confiavam nele.
"Eu não saberia fazer de novo, eu não estava no meu normal." Ele disse, mas o peso de suas ações estava começando a oprimí-lo.
"Eu imagino, mas ainda há a queixa de Noah. O veneno. O fato de ter viciado Harmony." Seu pai foi falando, Gift ergueu o queixo.
"Eu sou quem sou. Se não me aceitam aqui, eu irei embora. Harmony irá comigo, é claro." Ele disse.
Assim que as palavras saíram Gift viu o disparate que dizia. Ele era canino, caninos eram apegados aos seu familiares. Harmony também era canina, não havia sobrevivência para eles fora da Reserva.
"E se ela não quiser ir? Vai levá-la contra sua vontade? Você nem tem certeza de que ela se vinculou a você! Você a viciou! Ela estava namorando outro macho." Seu pai disse, Gift mais uma vez sentiu o peso de ser quem era sobre sua cabeça.
Desde que Harmony disse que não contaria que o viu ser rejeitado por Bronzy, desde esse dia, sua vida se transformou. E para pior. Ele havia tido Harmony em seus braços, ele se tornou o macho dela, ele se vinculou, mas tudo o que ele fez foi errado, muito errado. Harmony lhe chutou as bolas, lhe arranhou, lhe cuspiu. Ela não o amava. A luta com Ann se devia ao filhotinho de Violet. Harmony não lutou por ele.
Ela estava longe dele a um tempo, o efeito do veneno devia ter passado.
"Você não vai dizer nada?" O pai dele perguntou, Gift voltou a se deitar e não o respondeu. O que ele poderia dizer?
"Eu sinto muito se não consegui passar meus valores para você, eu sinto mesmo. Eu sou culpado por você agir assim, dessa maneira fria. Eu não queria que...
"Você não é culpado, papai. Eu sou. Você é o melhor pai que um macho pode ter, eu é que sou um filho decepcionante. Não se culpe." Gift disse com os olhos fechados, a verdade das palavras lhe doendo.
"Gift, eu..."
"Boas notícias!" Seu padrinho apareceu no corredor com um grande sorriso no rosto, Gift se levantou.
Justice fez sinal para ele se aproximar, Gift foi até as grades, seu padrinho lhe tocou o rosto.
"Nossa! Aí dentro com essa cabeça raspada, você parece seu pai. Numa..." Ele começou a falar num tom alegre, mas parou. Não era uma situação alegre.
"Eu convenci o conselho de que você mordeu Noah como uma forma de defesa. Eu falei e falei, apelei para o fato de que nenhum deles iria apreciar ver sua companheira lutando com outra fêmea. E que no caso de Fury e Tiger, você estava fora de si."
"E deu certo?" O pai de Gift perguntou. O Conselho prezava a ordem e o bem estar de todos os Novas Espécies. Todos de forma igual e Gift ser venenoso era um perigo.
"Não muito. Ele ser venenoso é um problema."
Gift beijou a mão de seu padrinho, ele beijou a de Gift. Seu pai estreitou os olhos, ele e Gift não trocavam carinhos. Justice demorou muito para ter Virtue, então ele sempre foi um segundo pai para Gift e um pai muito carinhoso.
"Qual foi a pena? Eu te agradeço, padrinho. Muito mesmo. Você ter tentado ajudar, mesmo sendo um pacifista, além do fato de que estou errado significa muito pra mim." Ele disse, seu padrinho assentiu.
"Assim como suas palavras, pai. Eu te envergonhei e ainda assim você está aqui. Eu amo vocês." Gift não sabia de onde saiu aquela baboseira sentimental, mas saiu e depois de dizer e de olhar nos olhos de seu padrinho e de seu pai, ele se sentiu bem. Se sentiu forte.
"Você tinha dito que tinha boas notícias."
Justice sorriu.
"Na verdade, acho melhor deixar quem salvou a bunda de Gift dizer." Ele aumentou seu sorriso enquanto Harrison aparecia no corredor.
"Oi, Gift." Ele disse, Gift acenou.
"Harrison, antes de fazer um ano, teve uma visão e salvou toda a Reserva na invasão de Evan Graham e seus capangas. Desde esse dia, nosso povo tinha uma dívida com ele e ele usou essa dívida para perdão das duas infrações." Seu padrinho disse, o pai de Gift abraçou Harrison num abraço de urso.
Atrás de Gift vinha Jaded, ele tinha a chave da cela de Gift. Jaded abriu a cela sem dizer nada e saiu. Gift não se importou, ele seria uma espécie de pária em sua própria terra, mas ele merecia isso.
Gift saiu, seu pai e seu padrinho o abraçaram, Harrison lhe fez um sinal de mais tarde e saiu. Gift estava mas mãos dele agora, mas isso era melhor que Fuller.
"Gift?" A voz de Harmony o fez soltar seu pai e seu padrinho. Ela vinha de mãos dadas com Valiant, Gift fingiu que não se importava por ele estar tocando-a. Era uma ótima hora para adestrar sua possessividade a respeito dela.
"Oi. Você está bem?" Ele perguntou, ela se aproximou mais dele e lhe alisou a cabeça.
"Se eu tivesse acordado antes, eu teria impedido Honest." Ela disse.
Gift ia dizer que ia se vingar, mas era só cabelo, ele tinha de começar a aprender a não levar tudo a ferro e fogo.
"Tudo bem, se isso não te afastar de mim." Ele disse, ela sorriu.
"Não, não vou me afastar de você."
Gift a abraçou. No abraço, Gift se inundou do cheiro dela, ele queria muito que não houvesse aquela barreira de roupas entre eles, nem que houvesse mais gente ali.
"Mas precisamos conversar." Ela disse, ele assentiu.
"Que tal você ir tomar um banho? Lá em casa? Sua mãe já deve ter chegado. Você também pode vir, Harmony." Seu padrinho disse, Gift agradeceu.
Eles saíram da clausura, Gift andou pelo complexo de cabeça erguida, afinal, Harrison usou uma honraria em troca da liberdade dele. Ainda que houvesse um motivo para isso, Gift apostaria todo o dinheiro que restou em seu cofre nisso, ainda assim, o ato de Harrison o tornou especial.
"Na sua casa então, Justice?" Valiant perguntou, o padrinho do Gift sorriu.
"Sim, Grande Leão. Traga sua família e a de Vengeance." Ele disse, Gift, Harmony, seu pai e Justice subiram no jipe.
Gift suspirou. Ele só queria ficar a sós com Harmony. Eles quase ficaram separados por um tempo indeterminado, Gift tinha empurrado essa possibilidade para um canto de sua mente para não fraquejar, mas agora, quando essa possibilidade estava extinta, tudo o que ele queria era matar a saudade. Uma enorme saudade.
Seu padrinho parou em frente a uma casa, Gift inspirou, não havia ninguém lá dentro.
"Vocês precisam conversar. Amanhã nos vemos. Sua madrinha vai vir aqui e te dar um tiro se vocês não forem tomar café conosco." Ele disse com um sorriso, Gift o abraçou, Justice lhe beijou a testa. Quando abraçou seu pai, ele o encarou e disse:
"Iremos conversar mais. Eu seria muito burro se não aprendesse uma lição com toda essa história."
"Você não é burro. É o meu pai. Eu te amo." Gift disse, quando colou sua testa a dele.
"Pelo menos agora eu sei que se eu raspar a cabeça ainda fico bonitão." Ele brincou, Gift riu.
"Você não é bom em piadas, deixe isso para o Tio Slade." Ele disse, seu pai rosnou. O padrinho de Gift deu a partida no jipe rindo da cara do pai de Gift.
Ele abriu a porta, Harmony entrou olhando em volta. Era uma casa padrão, com sala, cozinha e dois quartos.
"Eu sei que você quer conversar e eu concordo, Mony, mas eu estou sedento por você. Por favor, me deixe entrar em você agora."

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Ficção GeralQue tal não dizer os protagonistas dessa história? Talvez ir escrevendo e deixar que eles assumam o protagonismo? Ou deixar vocês escolherem? Bom, essa é a proposta dessa história. Eu tenho dois personagens os quais /adoraria escrever, mas vou deix...