CAPÍTULO 1

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A bolinha amarela continuava passando pelos obstáculos e Abel3 dava pulinhos. Ele estava muito feliz por seu feito, Caim sorria para encorajá-lo, ainda que soubesse que não daria certo. Abel3 errou a angulação de um dos livros por poucos graus e a bolinha sairia do percurso.
Foi exatamente o que aconteceu, mas Abel3 surpreendeu Caim ao sorrir e dizer:
"Essa foi mais longe que da última vez. Isso é legal, né?"
Caim aumentou o sorriso, Abel3 o abraçou.
"Eu nunca vou ser como você, mas posso ser o segundo melhor." Ele disse com um sorriso humilde, Caim o abraçou de volta com força.
"Hora da coleta." O humano disse cortando o momento, Abel3 escondeu seu rostinho gorducho no pescoço de Caim.
"Ele diz que não dói, mas dói! Eu não quero!" Abel3 começou a chorar, o humano riu. Seu rosto exibiu um sorriso cheio de crueldade para Caim.
"Anda. Se espernear vai doer ainda mais." Ele disse.
Caim estendeu a mão.
"Eu colho." O humano fechou a cara. Aparentemente, torturar um bebê de três meses devia ser o ponto alto do dia dele.
"Não. Nada de te dar agulhas. Lembra da última vez?" O humano disse, Caim rosnou para ele.
"Eu era só um bebezinho. E não preciso de uma seringa para te machucar." Caim disse ainda com a mão estendida.
O humano, que era um dos piores técnicos, olhou para Caim com os olhos apertados. Ele era um humano bem inteligente, o doutor não contratava burros.
"Não. Eu tenho ordens. Se quiser que eu não colha o sangue dele na próxima vez, fale com o doutor."
Caim o encarou, a vontade de machucá-lo era grande, mas isso daria ao doutor motivos para machucar Abel3. E Caim já estava sofrendo pela iminente morte de Abel3, ele não podia deixar que ele sofresse mais que o necessário.
"Abel, deixe ele colher. Vamos jogar bola depois, o que você acha? Você é corajoso, eu sei que você aguenta."
Abel3 encarou Caim e Caim viu devoção e confiança nos olhos dele, aquilo era o pior de tudo.
"Você vai ficar no meu colo, vem." Caim foi até uma cadeira, se sentou, Abel3 se sentou no colo dele. Barnes, o humano, colocou o bracinho curtinho e gordo de Abel3 em posição e colheu o sangue de forma eficiente. Abel3 escondeu o rosto no pescoço de Caim e tudo acabou rapidamente.
"Você foi muito corajoso! Quer sorvete?" Caim perguntou, Abel3 sorriu.
Eles saíram do quarto de brinquedos passaram pelo quarto de dormir e foram até a cozinha. Aquele espaço pareceria um apartamento se tivesse janelas, Caim sempre pensava isso quando andava pelos cômodos.
Sorvete de chocolate. Abel3 adorava. Caim também e ele se perguntava se seu pai também gostava de sorvete. Ou sua mãe.
Enquanto Abel3 devorava uma grande quantidade de sorvete, falando sobre a fase do jogo que estava sendo difícil, Caim pensava em como fazer o doutor lhe levar num parque. Caim queria correr, mas não na esteira.
"Aí, eu acho que devo entrar na sessão secreta da biblioteca, o que você acha, Caim?" Abel3 perguntou, Caim sorriu, estava cada vez mais fácil dividir sua mente.
"Não, Abel, a sessão secreta só está lá para te fazer perder tempo. Eu já disse."
"Mas você pode ter deixado algum cantinho sem examinar! Você foi lá quantas vezes?" Abel3 perguntou, Caim estava pensando nos motivos para o doutor ter mandado colher mais amostras de sangue de Abel3.
"Doze. Não há nada lá."
Abel, o primeiro viveu exatos quatro meses e três dias. Abel2 foi mais longe e viveu seis meses e treze dias.
Abel3 estava saudável, dali a uma semana completaria quatro meses, Caim se lembrava que foi esse sentimento que sentiu quando Abel2 passou a idade de Abel, o primeiro. Expectativa de que ele vingaria, de que...
Abel3 tossiu e cuspiu uma grande quantidade de sorvete na mesa. O sorvete era de chocolate, mas o que ele cuspiu tinha uma cor avermelhada.
Caim ficou parado, olhando Abel3 continuar tossindo. Ele vomitou e o que saiu da boca dele era vermelho, era sangue.
"Caim!" Abel3 disse por entre os vômitos. Caim o ajudou segurando sua cabeça.
"Calma, respire. Você deve ter comido muito sorvete." Não era isso, mas ele não iria fazer com que Abel3 ficasse desesperado.
"Tá doendo." Ele disse quando parou de vomitar, Caim o abraçou.
"Tá frio." Caim segurou a vontade de chorar. Ele morreria logo, foi assim antes.
"Eu vou morrer, Caim?" Abel3 sussurrou, Caim não teve tempo de responder, Abel3 morreu.
Caim se deixou ficar sentado no chão da pequena cozinha, com seu irmão barra clone nos braços. Não demorariam muito para levá-lo, ele queria o máximo de contato que pudesse. Abel4 já devia estar quase na hora de seu nascimento, Abel3 nasceu duas semanas depois da morte de Abel2.
Caim alisava os cabelos de Abel3 pensando se isso seria sua vida pelos próximos anos, cuidar de seus irmãos até que morressem. Qual o objetivo disso?
Por que o doutor estava fazendo aquilo?
Uma lágrima desceu pelo rosto de Caim e caiu na cabeça de Abel3. Ele queria tanto estar com seus pais! Ele queria tanto não estar ali, preso, sem ver o sol ou poder correr num parque!
Barnes veio e para crédito dele, só pegou o corpinho gordo de Abel3 e o levou sem dizer nada, Caim agradeceu. Ou foi por saber que se Caim quisesse poderia descontar sua tristeza nele e que agora não haveria ninguém para sofrer as consequências. Não importava, ele se foi, Caim agradeceu por isso. Ele começou a limpar a cozinha, lavou tudo, secou as vasilhas de sorvete, guardou. Tudo estava em ordem, alinhado perfeitamente. Isso ajudava.
Ordem, alinhamento perfeito e limpeza. Essas coisas ele poderia ter em qualquer lugar que estivesse e isso fazia com que ele, Caim, se sentisse pertencente a qualquer lugar que pudesse limpar e ordenar.
"Foi mais cedo dessa vez, Caim, eu sinto muito." A voz do doutor, às costas dele, fez com que Caim tivesse de se conter antes de se virar para que não o atacasse.
"Não, você não sente. Não por mim. Você sente frustração por não conseguir produzir um clone meu. Um clone sem que haja um embrião convencional. Você sente não ter conseguido isso. Só." Caim disse e se virou.
"Não. Eu me apego a eles, Caim, a morte de Abel3 me faz sofrer. Eu sofro."
"Então pare de fazê-los. Abel4 já deve estar para nascer, mas depois dele, pare. Por favor." Caim disse.
"Mas e o que eu faço com os que já estão nos ventres das barrigas de aluguel?" O doutor disse tirando um pote de açúcar do lugar.
Caim tomou o pote das mãos dele, o devolveu ao lugar e colocou água para ferver.
"Entendeu o que eu disse. Não faça mais implantações. Você não vai conseguir."Caim disse e se concentrou na chaleira. Ele tinha falado demais, ele estava vulnerável. Mas o doutor podia não ter percebido.
A água ferveu, Caim fez chá para eles, o doutor tomou um gole e suspirou.
"Perfeito. Como tudo o que você faz."
"Obrigado. Eu vou ler um pouco. Boa noite." Ele não sabia se era dia ou noite, mas tinha uma marcação particular de horas para não se perder. E em sua marcação era hora de ler e depois dormir. Fingir dormir no caso.
Se Abel3 estivesse ali, ele iria ler uma história para ele e só depois que Abel3 dormisse é que ele iria ler seu livro da vez. Agora não havia mais Abel3. Ele estava livre para ler seu livro sobre física quântica. Mas por que então isso doía tanto?
O doutor tomou tudo. Caim lavou tudo, secou e guardou nos lugares debaixo dos olhos dele, o que significava que ele percebeu. Caim tinha falado demais e ele conhecia Caim muito bem.
"Caim?" O doutor disse apenas o nome dele, mas havia toda uma pergunta por trás.
"Não vou dizer." Caim disse.
O doutor assentiu.
"São dois agora. Abel4 e Abel5. Univitelinos. Você vai gostar deles. Devem nascer daqui a uns dias. Boa noite." Ele disse e saiu andando bem devagar.
"Sua perna está doendo?" Caim perguntou, o doutor sorriu.
"Não, Caim. Eu nunca mais senti dor nas pernas. Graças a você. Eu só andei bem devagar para lhe dar uma chance de voltar atrás. Mas você parece não se importar em ver seus irmãos morrerem. Isso significa alguma coisa, não acha?"
Ele se importava, mas estava preso. Ele não podia ir onde quisesse, ele não conhecia seus pais. Ele era um prisioneiro e isso estava começando a lhe fazer querer fugir.
"Vê-los morrer me faz querer sair daqui. Me faz querer te matar, matar todos. Continue com isso e será o que eu farei." O doutor assentiu.
"Você poderia já ter me matado, mas não vai fazer isso. Você não é um assassino, Caim. Engraçado como seu nome é o nome do primeiro assassino da humanidade. Um contradição total."
Não era. Ele sabia como fazer com que os clones vivessem. Mas o que os aguardava? Uma vida de prisão e solidão? Caim era um fraticida, como o primeiro Caim foi.
Caim pensou nos gêmeos. Dois bebês gordinhos e comilões. Eles talvez seriam levados, seria uma festa dar banho neles. E podiam morrer em dias diferentes. O que morresse depois iria sofrer.
Caim foi para o quarto, a caminha de Abel3 estava lá, o travesseiro estava um pouquinho mais para a esquerda, Caim deixou assim, afinal isso indicava que Abel3 era Abel3 e não só mais um clone. Mas assim como os clones, Abel3 morreu. Ele morreu e o livro de física quântica estava na estante, dava para ver o marca página dali. Caim sentiu vontade de rasgar o livro, de engolir as páginas.
Mas ele foi até o caderno, tirou uma folha e escreveu a fórmula.
O doutor veio até ele, andando de forma elegante e confiante.
"Eu te dou se me disser que não matou Abel3." Caim disse, o doutor sorriu.
"Abel3 era defeituoso. Eu sabia que ele não duraria. Isso não é matá-lo." Ele informou.
Não era, mas saber que ele morreria e usar isso para fazer Caim sofrer foi uma maldade. Mas também inteligente. O doutor sabia que Caim se admirava da inteligência, mesmo que usada para o mal.
"Mas Barnes não o matou? Você não ordenou isso?" Caim perguntou, o doutor baixou os olhos verdes. Era engraçado ele ter uma pele bem morena e olhos tão claros. Os olhos do avô dele. A mãe e o pai dele tinham olhos castanhos.
Caim tinha os olhos, cabelos e pele da cor dos olhos, cabelos e pele de seu pai. Nada de sua mãe, segundo o doutor. Ele nunca os viu.
"Ele iria sofrer mais, Caim, foi..."
Caim rasgou o papel, mas como ele poderia pegar os pedaços, Caim comeu o papel olhando para o doutor.
O doutor sorriu.
"Eu não imaginava que seria tão fácil. Eu só queria saber se você sabia." Caim foi até a estante, pegou o livro de física quântica e se deitou.
"Eles não demorarão para estarem aqui. O berço deles chega amanhã. Um berço especial, feito por Novas Espécies. Tem um bom tempo que eu encomendei, sabia? Quem fez foi um tal de Thorment. Eu fiquei sabendo que ele tem um novo filhinho e por isso construiu vários berços. Talvez seu pai conheça os filhos dele."
Caim deu de ombros.
"Boa noite, Doutor." Ele disse dispensando o doutor. Não havia nada a se fazer. Os novos bebês iriam chegar e iriam morrer.
"Boa noite, Caim. O parto acontecerá daqui a alguns dias. Se mudar de idéia..."
Caim pensou nos dois bebês no bercinho. Eles iriam puxar os cabelos um do outro? Ou dormiriam abraçados?
Caim suspirou. O doutor o conhecia bem, muito bem.
"O livro de Abel3. A fórmula está lá." Ele disse e mergulhou no livro em suas mãos. Abel3 gostaria disso, ele era humilde, ele dizia que Caim era um super herói. Um super herói protegia os outros e Caim deixou seus irmãos morrerem, ele não deixaria mais.
O doutor pegou o livro e saiu, Caim fechou os olhos. Estava casa vez mais difícil dormir.

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