Leotie apertou os lábios, seu coração estava mesmo dividido. E isso lhe mostrava que ela não era uma caçadora. Mostrava que ela não era digna de sua família. Que o grande espírito caçador não habitava em seu corpo.
Ela apertou o gatilho de leve, bem no meio da testa do engraçadinho, ele ria do outro o chamando de pau no cu. Leotie achava muito estranho as conversas deles. O líder, que a princípio ela pensou que fosse o mais velho, era o mais novo. O mais velho, o mais famoso, o mais temido, não passava de um rapaz com fisionomia amigável. Leotie não teria medo dele, nem se quem estivesse do outro lado do rifle fosse ele e não ela.
O outro, moreno, imponente, se destacava como um corvo entre beija-flores, já que seus cabelos eram escuros e os outros três eram ruivos e um loiro. O loiro...
"Tie, cuidado com esse dedo." Weeko disse baixinho, ela tirou o dedo do gatilho.
"Papai ligou, vamos voltar." Ela correu a mira da arma sobre eles e parou no rosto do loiro. Olhos claros, azuis ou... Mesmo daquela distância Leotie via que os olhos dele não eram humanos, pareciam azuis e dourados. Mas poderia ser só uma ilusão de ótica.
Ele piscou, Leotie quase apertou o gatilho, o coração dela disparou. Weeko se virou e começou a correr, ela correu atrás dele com o sorrisinho de lado do loiro na mente.
Ela forçou as pernas a alcançar seu irmão e conseguiu, era uma grande distância até às motos. Leotie chegou na moto dela só alguns minutos depois, seu irmão lhe esperou com um sorriso no rosto. Leotie fez língua para ele, subiu na moto e saiu a toda.
Nas motos o panorama era outro, Leotie pilotava melhor e devido ao caminho acidentado, ela chegou bem antes à aldeia. Quando seu irmão chegou, ela tinha um sorriso no rosto.
"Um pulinho só e você teve a vantagem. E eu te deixei no lado melhor da estrada."
Ele disse com a cara fechada.
"Já usou essa desculpa." Ela disse, eles entraram na aldeia, o cheiro da comida chegou ao nariz dela. Leotie correu até a grande casa de seu pai, sua mãe já estava na porta.
"Almoço. Agora." Ela disse.
Eles atravessaram a casa e nos fundos seu pai já estava sentado na mesa. Weeko se sentou a direita dele, Leotie suspirou. Era o lugar de seu irmão mais velho, seu irmão que foi devorado.
Eles se serviram, algumas pessoas ainda se sentavam, mas ela estava com fome.
"E então?" O pai dela perguntou, Leotie ia abrir a boca, seu pai ergueu uma sobrancelha. Weeko estava no comando, seu pai só lhe permitiu ir se ela obedecesse essa ordem.
"Eles continuam caçando, comendo, dormindo naquelas barracas, parecendo estarem de férias. Às vezes, eles exploram a área, mas não acharam nada. Se é que estão procurando alguma coisa." Weeko disse.
"E não viram vocês?" Nesse momento o pai de Leotie lhe encarou.
Ela o encarou de volta sufocando a vontade de dizer que o loiro piscou e sorriu para ela.
"Não. Eles são como o outro grupo." Weeko disse, Leotie assentiu energicamente com a cabeça, seu pai ergueu uma sobrancelha.
"Leotie?" Ele só disse o nome dela e ela suspirou.
"Eu acho que o loiro me viu." Weeko rangeu os dentes.
"Por que não me contou?"
"Foi só uma suspeita!"
"Loiro? Não eram só os tais Leãozinhos e um moreno?" Seu pai perguntou.
"Sim. Ele chegou depois. Não é muito diferente, não há nada demais nele. Eles parecem pessoas normais, conversam como jovens normais." Weeko disse.
Era verdade. Eles não diferiam em nada de uma turma de turistas.
"E os lobos?" Sua mãe perguntou, ela não se importava com esses homens-animais, ela queria vingança e só. Leotie ainda queria entender melhor tudo, a história de Ahote não fazia muito sentido. Por que uma moça branca foi morta? Leotie tinha levantado essas dúvidas, mas seu pai estava corroído pela dor de perder seu filho mais velho e não lhe deixou levar esse assunto adiante.
"Não vimos nenhum a semana toda."
"Acho que eles vão se recolher ao mundo espiritual mais cedo." O velho Achak disse, algumas pessoas suspiraram de alívio. Lobos eram lobos, animais que apenas seguiam seu instinto.
"Eu não vou ficar um ano parado, Achak. Iremos procurá-los dia e noite." O pai dela disse.
"Eu acho inútil, mas é seu direito. Quando foi meu irmão, eu também quis encontrá-los, mas não adiantou."
O pai de Leotie assentiu e não disse mais nada.
"É verdade que eles são muito bonitos, Tie?" Adsila perguntou, outras mulheres a olharam interessadas. Doya estreitou os olhos.
Ela deu de ombros. Não podia se mostrar admirada deles, Doya era muito ciumento e poderia dar um jeito de impedir que ela voltasse.
"Não deu pra ver direito, ficamos muito longe."
"Dizem que um deles, o líder tem super faro. É verdade?" Achak perguntou.
Weeko deu de ombros.
"Não notei nada demais neles. Estávamos sempre contra o vento e bem longe, eles não nos notaram." Ele disse a última frase num tom decidido, Leotie assentiu. Foi só um sorrisinho.
"Doya irá com vocês amanhã. Ficarão uma semana, se nenhum lobo aparecer, ou os homens-animais irem embora, vocês voltam e... Seguiremos nossa vida." O pai dela proclamou em sua voz de autoridade.
"Até o ano que vem." Achak disse, todos repetiram:
"Até o ano que vem."
E era isso. Leotie entendia que aqueles lobos tinham tirado muitas vidas da tribo dela, mas eles viverem só para exterminá-los às vezes lhe parecia demais.
A dor por seu irmão lhe cortava o peito, ninguém a deixou vê-lo devido ao estado que o corpo dele ficou e Leotie só tinha a lembrança do sorriso triste dele na última vez que conversaram.
"Eles já me tiraram o coração, Tie, se acabarem com o corpo não vai fazer diferença."
A noiva dele foi morta dois anos antes, seu irmão nunca se recuperou.
Leotie almoçou, ajudou a mãe a lavar tudo e depois foi ao túmulo de seu irmão. Ela tocou na lápide de Honaw e depois na de Ailen. Eles estavam juntos agora. Talvez devessem agradecer aos lobos.
Ela suspirou, desde novinha ela procurou entender como tudo começou. Por que o objetivo da tribo dela era matar os lobos. Mas já tinha se passado um século e tudo era muito nebuloso. A maioria dos anciões diziam que eles caçavam os lobos por que sim.
"Eu vou trazer o pêlo do lobo branco. E quando isso acontecer, seu irmão irá descansar." A voz de Doya às costas dela a fez lamentar ter ido ali. Ela estava cansada, empoeirada, seu cabelo desgrenhado. Não era uma boa aparência para ver seu noivo depois de uma semana longe.
"Eu acho que ele já descansa. Ele e Ailen estão juntos agora."
Ela se virou, Doya sorriu.
"Não sei. Como uma morte como a dele pode trazer descanso?" Ele perguntou, mas não esperava resposta.
"Eu me sinto menos triste quando penso assim." Ele assentiu, o ar condescendente dele não a incomodou. Ele era um homem que acreditava que mulheres pensavam mais com o coração do que com a razão e Leotie não tinha intenção de contradizê-lo.
"Eu pensei que poderia matar o lobo branco esse ano e assim conquistar o direito de nos casarmos. Amanhã eu estarei torcendo para que eles não tenham ido." Leotie sorriu.
O lobo branco já foi chamado de morte branca e isso era por demais certo. Havia mais de uma história em que mulheres da tribo dela exigiram a pele dele para escaparem de casamentos indesejados. A história mais famosa era a de...
"Leotie?" Ela piscou, Doya lhe encarava muito sério.
"O quê? Me desculpe, eu me distraí."
Ele balançou a cabeça chateado.
"Como pode se distrair tão fácil e ainda assim seu pai permitir ir vigiar aqueles homens-animais?" Ele perguntou, Leotie sentiu a raiva vindo, mas a sufocou.
"Eu estava pensando em como o lobo branco seria. Há tantas lendas e canções, eu me deixei levar, me desculpe." Ele apertou os lábios. Doya era muito severo, Leotie até gostava disso, embora talvez fosse por ele ser parecido ao pai dela. Ele queria ser o líder e o pêlo do lobo branco lhe traria isso também. Ou se o lobo branco matasse Weeko. Leotie estremeceu ante esse pensamento. Doya e Weeko eram amigos, ele nunca torceria para seu amigo morrer.
"Ele é um lobo e é branco. Olhos vermelhos. Só." Ela assentiu. Doya a abraçou, Leotie se debateu de leve ele a soltou.
"Estou muito suja." Ele sorriu, algo em Leotie, um sentimento estranho a impediu de sorrir de volta.
"Você é linda. Tão linda que me faz ter vontade de pedir uma prova a seu pai e deixar meu sonho de caçar um lobo para trás."
Ela sorriu dessa vez, uma prova era uma quantia em dinheiro. Ele estava dizendo que estava dividido entre pagar para casar com ela ou caçar um lobo. Os lobos eram assassinos, mas ainda assim, Leotie pensava se a morte de um deles só para provar bravura era mesmo necessário.
Ela se despediu dele, foi para casa, tomou banho e se arrumou para o jantar. No dia seguinte estaria de novo vigiando os homens-animais. Ela iria rir com as piadas do engraçadinho e tentar não deixar a mira da arma no rosto do loiro.

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Ficção GeralQue tal não dizer os protagonistas dessa história? Talvez ir escrevendo e deixar que eles assumam o protagonismo? Ou deixar vocês escolherem? Bom, essa é a proposta dessa história. Eu tenho dois personagens os quais /adoraria escrever, mas vou deix...