20 ▪︎ Memórias pós-traumas

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Montserrat

Caminhamos pela praça de mãos dadas. Eu estava mais achegada em seu braço. Já era de noite, passamos o dia todo por aqui.

— Vamos sentar ali naquele banco — apontei.

— Tudo bem.

Percebi que ele era muito impassível. Não se importava com nada banal. Não interessava se eu pedisse uma casa ou um sorvete, ele sempre me dava.

— O dia de hoje foi bem relaxante depois de tudo. Quando chegamos da viagem e entrei no apartamento, eles me surpreenderam. Me desesperei ao ver Alina desacordada. Foi horrível.

— Não vai mais acontecer, garanto isso. Foram os generais do rei sob sua ordem. Queriam retaliação pela morte de Laura.

Suspirei. Agradeço por não terem feito nada pior.

— Vlad, você poderia me dizer o que são meus sonhos? Eu queria pelo menos saber para ter uma justificativa para o medo.

Ele olhava para frente, com os braços cruzados. Estava estoico.

— Não ao sei certo explicar. Talvez seja a parte maliciosa da mente de Morgana.

— Teve um sonho em que ela disse que você não soube amá-la e que não saberá me amar também. O que exatamente aconteceu no seu passado?

Franziu o cenho. Parecia ser uma péssima lembrança.

— Fiquei casado com ela por um século. Foi o pior da minha vida. Nessa época várias guerras eram travadas, não só entre vampiros, mas entre os humanos também. E sempre éramos convocados. Morgana, assim como eu, nunca demonstrou misericórdia. Brincava com suas vítimas e esbanjava de sua magia. Eu por outro lado gostava de assassinatos em massa. Nossa vida conjugal sempre foi conturbada. Raramente demonstrávamos afeto. Ela era sempre arrogante e histérica. Eu suportava sua arrogância para comigo, mas não com meus pais. Por isso acabávamos discutindo, e muito. Foi assim até aquele fatídico dia.

Tinha pesar em seus olhos. Posso imaginar o inferno que viveram.

— Em nosso aniversário de casamento — continuou —, saímos de viagem para uma ilha na Austrália. Embarcamos no navio e tudo parecia ir bem. Morgana era muito cuidadosa, sempre me impedia de ler seu pensamento com uma magia de blindagem. Por isso não sabia o que ela pensava ou seus planos. Ela demonstrou ser mais afetuosa e carinhosa durante a viagem. Pensei que estaria mudando, estranhei seu comportamento. Mas não reclamei ou questionei. Quando desembarcamos, eu caí na armadilha. Descobri que ela havia me negociado. Pelo rei demônio daquele lugar. Um ser poderoso das profundezas do submundo. Imediatamente fui imobilizado e colocado em uma cela. O que eles não sabiam era que eu tinha poderes de bruxos também. Então facilmente me libertei. Era eu contra todos eles. O rei, o exército e Morgana. A deixei por último. Foi aí que ela me revelou. Que me usou, que nunca me amou e que tinha interesse em meus poderes. E que o rei poderia tirá-los de mim e dar a ela. Quando atravessei a mão em seu peito e arranquei seu coração, falou que eu nunca soube amá-la. Morgana confundiu tudo. Pensou que eu era devoto para me sacrificar pela sua ganância. Ela queria ser a rainha dos bruxos mesmo eles contra essa decisão. — Me olhou. — Não dê importância a esses sonhos. Morgana está morta, não fará mais nenhum mal.

Parecia ser uma lembrança dolorosa. Encostei a cabeça em seu braço e passei a mão o consolando.

— Eu sinto muito mesmo. Deve ter sido horrível. Mas que bom que passou. Agora estamos juntos. É o que importa, não é?

Olhei ansiosa. Ele passou o braço pelos meus ombros e me aproximou.

— Sim. É isso o que importa.

Eu sorri. Definitivamente era bom estar aqui. Não pensei que aceitasse a ideia tão rápido, mas assim aconteceu.

Saímos da praça e voltamos para a chácara. Malthus estava sentado na poltrona, tomando café e lendo um jornal. Vestia um robe. Parecia um vozinho.

— Que bom que chegaram.

— Desculpe a demora. Fomos almoçar — falei.

— Sonja ligou. Disse que não suporta mais estar longe de casa e quer que retornemos.

— Amanhã iremos. Não se preocupe — disse Vladimir.

Subimos as escadas. Ele sentou na cama e eu fiquei entre suas pernas. Ajudei a retirar seu blazer.

— Vá tomar um banho, enquanto peço algo para comermos — falei.

— Para mim não, estou satisfeito. Apenas você e meu pai, se ele quiser.

Fiz um carinho em sua cabeça. Ele segurava minha cintura.

— Eu fiquei surpresa por você não tentar me assediar ou levar para cama, pensei que fosse um louco por sexo.

Ele ergueu uma sobrancelha.

— É claro que não. Não sou ninfomaníaco, muito menos um tarado. Sei me controlar e ter prazer na hora certa. Com quem e do jeito que eu desejo.

— Ah, claro. É do jeito que VOCÊ quer. Estranho. Pensei que vampiros fosse um ser justamente conduzido pela luxúria. Me surpreende.

— E somos. Mas não para aqueles que tem autocontrole.

Revirei os olhos. Mas que convencido!

— Tudo bem. Vá tomar banho, enquanto janto.

Saí do quarto balançando a cabeça e rindo. Ele era muito autoconfiante.

Apenas eu jantei, mas eles ficaram me observando. Malthus disse que era tradição comerem juntos as três refeições do dia. Isso estranhamente me deixou contente. Nunca tive isso, nem no orfanato. Às vezes eu comia sozinha, nem sempre era tão próxima das colegas e irmãs. Os Bathory me acolheram e isso me faz bem. Ter a família que nunca tive me enche de esperanças ao saber que não estarei mais só. Ainda mais com ele ao meu lado, me fazendo crer que é o caminho certo.

— Por que é assim? — perguntei com a cabeça deitada em seu peito. — Lento e devagar?

— Se refere ao meu coração?

— Uhum.

Eu estava quase pegando no sono.

— Temos o batimento reduzido pela metade em relação aos humanos. Justamente por sermos seres mais melancólico e das trevas. Mas, lobisomens, por exemplo, tem o dobro em relação aos humanos. Por isso são quentes e mais acolhedores.

— É incrível. Não só há genética, como também magia. O que se torna contraditório.

— Sim. O sobrenatural não tem explicação.

Suspirei, fechando os olhos.

— Boa noite... Vlad.

— Boa noite, raposinha. Estarei aqui quando acordar.

Deu um beijo em minha cabeça.

Espero acordar todos os dias ao seu lado, Vlad.

Império - Trono de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora