POV Hyoga/POV Camus

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O caminho para casa foi rápido. Fiquei calado o tempo inteiro. Meu pai parecia inquieto e eu estava apreensivo. Eu teria que revelar tudo? Eu teria que falar tudo pra eles? Eu não queria ter aquela conversa. Eu não queria revelar todo aquele passado horrível. Eu sequer sabia se conseguiria falar alguma coisa. Provavelmente, assim que começasse, eu ia travar todo. Sentia meu coração batendo forte, rápido e de maneira descompassada. Sentia que minha respiração estava mais difícil, mais pesada. Eu ia acabar entrando em pânico. Respirei fundo. Eu precisava me acalmar. Mesmo que eles soubessem, eu não ficaria ali. Eu ia embora e provavelmente não os veria mais. Eu não seria problema para eles. Tudo ficaria bem. Tudo ficaria bem.
Chegamos e nos direcionamos para dentro de casa. Assim que entramos na sala vi... Isaak? O que ele estava fazendo ali? Ele me olhou meio sem jeito. Milo, que estava sentado ao lado dele, foi de encontro ao meu pai. Eu fui correndo até Isaak, que me abraçou apertado.
- O que houve? O que está fazendo aqui? – perguntei.
- Milo me seguiu e descobriu a farsa. Desculpa, maninho. – ele me disse.
- Meninos. – Milo chamou nossa atenção. Ele e meu pai ficaram de pé, na nossa frente. – Agora vocês não têm mais como esconder ou tentar nos enganar. Precisamos saber a verdade.
- Nós...
- Não adianta, Hyoga. – Isaak disse com a mão em meu ombro. – Eles já sabem de tudo.
- C-como assim? – perguntei, com medo da resposta. Isaak suspirou antes de responder.
- Ontem eu os ouvi conversando na casa do Ikki. Eles descobriram tudo. Já sabem sobre ele e tudo que aconteceu. O que eles querem são os detalhes.
Paralisei naquele momento. Já sabiam? Já sabiam que eu...? Já sabiam sobre... sobre ele? Como assim? Eu não falei nada! Quer dizer, Milo tinha aquela intuição sobre-humana, mas mesmo assim. Tudo? Minha visão ficou embaçada de repente. Senti uma pontada forte em meu peito. Minha respiração ficou pesada. Senti meu estômago se revirar. Vi uma sombra atrás dos meus pais. Era... ele! Ele estava ali! Ele tinha aquele sorriso vitorioso no rosto! Senti o chão faltar em meus pés.

Flash Back

E lá estava eu. Eu estava tremendo dos pés à cabeça. Senti o peso do olhar de todos que estavam ali. Mulheres, adolescentes e crianças estavam ao meu redor. Eu parecia ser um dos mais novos ali. Tinha um ou outro que parecia ser mais novo ou da mesma idade. Estava no centro do salão e a minha frente, sentado em uma cadeira, atrás de uma mesa que parecia ser de uma recepção, estava ele. Seu queixo estava apoiado sobre as mãos, os braços apoiados à mesa pelos cotovelos. Ele sorria de maneira sádica. Seus cabelos eram curtos e negros, assim como seus olhos. Eu sentia que ele me devorava com aquele olhar. Eu estava com medo, mas não tinha mais como voltar atrás.
- Então, qual seu nome mesmo? – ele começou.
- Hyoga. – respondi, olhando para meus pés.
- Hyoga. – ele parecia falar mais para si mesmo. – Quer dizer que você veio me pedir dinheiro emprestado?!
- Sim, senhor. – eu ainda falava baixo e olhando para o chão.
- E você sabe como as coisas aqui funcionam?
- Sim, senhor.
Ouvi o barulho da cadeira se movendo e passos vindo em minha direção. De repente, ele estava na minha frente. Ele levantou meu rosto, para que eu o encarasse.
- Confesso que já estava de olho em você. Não é sempre que vemos um garoto tão lindo assim por aqui. – ele passou a língua pelos lábios, como se estivesse ansioso por saborear uma comida gostosa. – Mas estava esperando você ficar um pouquinho mais velho. Quantos anos tem?
- Dez, senhor.
- É uma boa idade pra mim, mas pros negócios fica meio chato. Vocês costumam chorar demais e isso acaba se tornando um problema. Porém, visto que foi você que veio até mim, devo acreditar que está determinado, não é?
- Sim, senhor.
Ele se agachou, ficando com o rosto bem próximo a mim.
- Já que está tão desesperado por minha ajuda, devo deixar algumas regras claras. Primeiro, a partir de agora você é meu. Obedece a mim, se reporta a mim e serve a mim. Minha palavra é absoluta. Você não vai questionar, não vai reclamar, não vai abrir a boca pra falar um “a” que seja. Entendeu?
- Sim, senhor.
- E caso resolva desobedecer... – senti um soco bem forte no meu rosto e caí no chão. Abriu uma ferida na minha boca, fazendo o sangue escorrer. Olhei para ele assustado. – Será castigado de acordo. – ele se levantou e continuou. – Segundo, você vai trabalhar calado. Nada de ficar choramingando com os clientes, não poderá recusar clientes e sempre que eu te chamar, independente do horário, você terá que estar aqui. Se eu tiver que te buscar na sua casa, sua avó vai sofrer as consequências.
Aquela fala me assustou ainda mais. Como ele sabia da minha avó? Droga! Eu tinha me metido com alguém bem perigoso.
- Terceiro, todo o dinheiro que você receber deve ser entregue a mim. Se eu souber que recebeu algum extra e não me der, pode ter certeza de que vai ter alguma punição. A partir de agora você tem uma dívida comigo e ela será acrescida de juros. Não vou te explicar como isso funciona agora, depois você pergunta pros outros. – ele veio novamente na minha direção e se agachou novamente. – Levante-se.
Eu me levantei lentamente, estava tremendo muito. Ele passou o dedo no sangue que escorria da minha boca e depois o lambeu.
- Se você for um bom garoto, será tratado muito bem. Eu não gosto de ficar agredindo meus brinquedos, porque isso atrapalha nos negócios. Então não me faça te machucar desnecessariamente, porque se precisar, eu não hesitarei.
- Sim, senhor.
- Pois bem. – ele se levantou. – Tire suas roupas.
Eu fiquei um pouco sem reação naquele momento. Como assim tirar minhas roupas? Ali? Naquele momento? Na frente de todo mundo?
- Anda logo!
Ele falou mais firme e eu, obedeci, rapidamente. Tirei tudo, até ficar só de cueca.
- A cueca também.
Senti um calafrio subir pela minha espinha. Achei melhor não contrariar. Tirei a última peça lentamente. Senti minha face corar com todos os olhares sob mim. Eu estava cabisbaixo, minha franja cobria meus olhos. Mas eu podia ver que alguns me olhavam com pena, outros desviaram o olhar, com os punhos cerrados, e outros apenas sorriam, sadicamente. Ouvi o homem, que antes estava a minha frente, ir em direção à mesa e pegar a cadeira que estava atrás. Ele colocou a cadeira de frente para mim e sentou-se nela. Levantei meu olhar e vi que ele me olhava de uma maneira estranha. Ele parecia me analisar de cima a baixo.
- Venha, nós vamos selar esse acordo. Farei você ser meu em frente a todos aqui, que serão minhas testemunhas.
Caminhei lentamente até ele, com lágrimas descendo pelo meu rosto. Ali, meu destino estava selado.

Fim do Flash Back

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POV Camus

Vi lágrimas descendo pelo rosto do meu filho. Seu olhar parecia distante, sem vida. Ele parecia estar completamente alheio ao que estava acontecendo ao seu redor. Sua respiração estava pesada e acelerada. Mesmo assim, ele parecia olhar fixamente para um ponto atrás de Milo e eu. Droga! Ele estava tendo um ataque de pânico!
- Hyoga! – tentei chamá-lo, mas ele não teve nenhuma reação. Dei um passo para frente, mas fui interrompido por Isaak.
- Deixa comigo, senhor Camus. – ele ficou de frente para Hyoga e encostou sua testa na de meu filho, ficando com os rostos bem próximos. Ele segurava Hyoga pelos braços. – Hyoga, sou eu, Isaak. Feche os olhos. – meu filho o fez. – Muito bem, agora apenas ouça o som da minha voz. Respira devagar. Ele não está aqui. Vai ficar tudo bem. Não vou deixar que ele te machuque. Você confia em mim? – meu filho apenas acenou positivamente com a cabeça. – Muito bem. Agora respira fundo. – Hyoga obedeceu. – Excelente. Abra os olhos. – Hyoga o fez lentamente. Ele ainda chorava, mas parecia estar mais calmo. Isaak segurou em seu rosto e lhe deu um beijo na testa. – Vai ficar tudo bem, maninho. Eu estou aqui com você.
Milo e eu nos entreolhamos. Aquela cena me comoveu. Isaak cuidava muito bem de Hyoga. A relação dos dois era realmente muito forte. Não era qualquer um que sabia lidar com um ataque de pânico tão bem como Isaak o fizera. Fiquei me perguntando quantas vezes aquilo acontecera para que Isaak conseguisse agir tão bem e com tanta calma como o fez.
- Olha, eu sei que vocês querem saber tudo, mas não podemos deixar isso pra outro dia? Hyoga não tem condições de falar com vocês. Eu conto tudo que quiserem, mas o deixem descansar, por favor. – Isaak suplicava, bastante preocupado.
Milo olhou para mim, como que questionando o que fazer. Suspirei pesadamente. Fui até onde os dois estavam. Coloquei minha mão na cabeça de Isaak, que me deu espaço. Peguei Hyoga no colo e me sentei com ele. Isaak se sentou ao meu lado e Milo sentou-se do outro lado de Isaak. Embalei meu filho nos meus braços e ele afundou o rosto no meu pescoço. Suas lágrimas escorriam pela minha pele, quentes. Aquilo cortava meu coração. Quantas vezes mais teria que ver meu filho sofrer daquela forma? Sinceramente, eu nem sabia que alguém poderia chorar tanto como Hyoga o fazia. Desde que ele chegou, será que teve algum dia que não saiu lágrimas daqueles olhos? Eu não queria continuar aquele assunto naquele momento, mas eu não tinha como adiar mais. Enquanto eu não soubesse do que aquilo se tratava, eu não poderia fazer nada para ajudar meu filho. E se as coisas continuassem daquela forma, logo a saúde de Hyoga estaria prejudicada e tudo se complicaria ainda mais. Além disso, eu ainda não entendia o que Isaak estava fazendo ali. Milo conversou comigo por telefone, mas não tinha explicado muita coisa. Ele não deveria estar com os pais? Se aqueles não eram seus pais de verdade, quem eram? Por que foram lá para nos enganar? O que eles ganhariam com isso? Como Isaak os convenceu a fazer aquilo? Ou será que eles que obrigaram Isaak a mentir? Ainda tinha muito o que ser explicado.
Hyoga chorava silenciosamente em meu pescoço. Deixei que o fizesse, para que colocasse tudo para fora e olhei para Milo, pedindo que continuasse dali. Ele me entendeu prontamente.
- Isaak, sabemos que está preocupado com Hyoga, mas não precisa tentar protegê-lo de nós. Vamos assumir as coisas a partir de agora e proteger vocês dois, ok? – Milo disse, com a mão na cabeça de Isaak. Esse, por sua vez, olhava para os próprios pés.
- Eu não estou tentando proteger Hyoga de vocês. É só que... é difícil pra mim ver ele sofrendo desse jeito. – seus olhos se encheram de lágrimas. – Eu não só sei, como vi tudo que Hyoga passou. Lembrar disso é difícil até pra mim.
- Sabemos que é difícil. Mas, infelizmente, não temos como ajudar sem que nos digam tudo. Embora você mesmo tenha dito que já sabemos de tudo, algumas coisas ainda não se encaixam. E são exatamente essas coisas que precisamos saber. – Milo insistiu.
- Então deixem que eu fale primeiro, até ele se acalmar. – Isaak pediu novamente.
- Tudo bem. – interferi. – Você pode começar me explicando, então, por que está aqui. Pensei que tinha ido com seus pais. – vi Isaak suspirando.
- Aqueles não eram meus pais, senhor Camus. Eu menti para vocês. Na verdade, eu sou órfão. Eu já contei algumas coisas pro senhor Milo, mas vou explicar do começo. – ele deu uma pausa para respirar fundo. - Eu realmente nasci na Finlândia. Minha mãe era uma viciada em drogas que acabou se envolvendo com uma organização criminosa. Em troca das drogas, ela se prostituía. Ela se deitava com muitos caras, todos os dias. E na maioria das vezes ela estava bem chapada. Por isso, quando ela engravidou de mim, não tinha ideia quem poderia ser meu pai. Por conta do meu nascimento, eles meio que transferiram ela pra Sibéria. Acho que na Finlândia os clientes são mais exigentes, então ela meio que parou de ser requisitada. Aí, transferir ela pra Sibéria, foi como declarar que a carreira dela estava em decadência, já que o corpo mudou depois da gravidez. E para onde eles a mandaram não tinha muita gente, então os clientes aceitavam qualquer coisa. Independente disso, ela continuou se drogando e se prostituindo. Eu meio que cresci nesse meio, acompanhando praticamente tudo. Tinha dias que eu até ficava no quarto enquanto ela trabalhava. Então, quando eu fiz uns seis anos, ela morreu de overdose e eu acabei assumindo a dívida dela com os criminosos. E pra tentar pagar, segui o mesmo caminho que ela.
Eu estava assustado com a naturalidade com que Isaak contava seu passado. Eu nem sabia como me sentir com relação aquilo, visto que ele mesmo estava bastante tranquilo, apesar de ser algo horrível. Ele disse que seguiu o mesmo caminho da mãe quando ela morreu. Significava que... Senti meu estômago revirar. Ele foi aliciado aos seis anos? Era isso mesmo que eu tinha entendido? Apesar de parecer algo inconcebível, eu não conseguia esboçar surpresa ou revolta. Afinal, Isaak contava com tanto desinteresse que parecia muito menos impactante do que realmente era. Ficava me perguntando se ele tratava aquilo daquela forma por ter nascido no meio e não ter muita ciência de que aquilo não era normal ou se ele sofrera tanto que resolveu simplesmente aceitar. Qualquer uma das alternativas era péssimo.
Isaak olhava pros próprios pés e os balançava, quase como uma criança entediada. Até que Milo resolveu continuar.
- Então, quando você me disse aquela hora que estava envolvido no esquema... – Milo falou.
- Meio que já faz alguns anos que trabalho pros criminosos, então acabei conquistando determinada relevância dentro da organização. Foi difícil no começo, porque eu era muito criança e tinha muito velho pedófilo e tarado. Mas eu me acostumei rápido, até porque eu cresci vendo minha mãe fazendo aquilo. Então, acabei me virando pra conquistar a confiança dos líderes. – ele parou por um momento, parecendo se lembrar de algo desagradável. – Eu sabia que se quisesse sobreviver e ter a chance de ter uma vida um pouco melhor, eu teria que “dançar conforme a música”, se é que me entendem. Hoje eu sou meio que o braço direito do líder da região.
- E quem eram aquelas pessoas que você nos apresentou como seus pais? – perguntei.
- A mulher era uma prostituta ligada à organização. O homem é um cara qualquer que se apaixonou por ela. Ele quis comprá-la, mas o líder lá elevou bastante o preço, o que fez com que ele se endividasse. Aí, pra ter o perdão da dívida, eles me ajudaram a tentar enganá-los.
- Isso não faz muito sentido. – disse Milo. – Por que o líder perdoaria a dívida dos dois só para que te ajudassem? – era um bom ponto. Isaak suspirou.
- Aí já entra a parte do Hyoga. – senti meu filho se encolher em meu colo. – Se Hyoga deixar e vocês não se importarem, eu posso contar.
- Não! – Hyoga falou, rapidamente.
Suspirei com aquela reação. Obviamente que, depois de ouvir aquelas atrocidades de Isaak, eu sabia que seria muito difícil ouvir a parte de Hyoga. Mas, infelizmente, eu precisava saber.
- Meu filho, a essa altura, nós já entendemos o que te aconteceu. Mas pra te ajudar, precisamos saber tudo. Sei que é difícil pra você falar, então pelo menos deixe que Isaak continue. – tentei convencê-lo.
Hyoga ficou calado, ainda com o rosto no meu pescoço. Eu tive que afastá-lo um pouco, sem tirá-lo do meu colo, apenas para que ele olhasse para mim.
- Hyoga, por que tanta teimosia? Olha só pra você! Olha como está sofrendo! Nós só queremos te ajudar, te proteger! Por que reluta tanto em nos permitir cuidar de você? – ele não olhava pra mim. Segurei em seu rosto, o obrigando a me encarar. – Responda!
Naquele momento, Hyoga me encarou com um olhar magoado, como se eu o estivesse traindo. Agora saía muitas lágrimas de seus olhos, como se ele estivesse fazendo força pra chorar. Sua expressão era de dor e sua angústia era palpável. Meu coração se apertou ainda mais ao vê-lo daquele jeito.
- Você quer saber por quê? Quer saber por quê? Porque eu te amo! Porque eu te amo, pai! Eu te amo muito mais do que essa minha vida de merda! E eu quero te proteger, droga! Te proteger dessa imundice na qual eu me enfiei! – ele falava como se cada palavra doesse para ser dita. – Quisera eu ser forte o suficiente pra viver longe de você! Assim você não precisaria saber que tem um filho tão horrível quanto eu! Mas... mas eu sou um fraco! Eu sabia que a melhor forma de te proteger era ficando longe, mas eu queria te conhecer! Eu queria te ver, te tocar, sentir seu cheiro! E agora você está aqui, tendo que lidar com um passado amargo e problemático! E eu me odeio por isso! Eu me odeio por ter vindo aqui pra destruir a felicidade que você conquistou! Quer dizer, olha pra tudo isso! Até um novo amor, tão incrível quanto minha mãe, você encontrou! Que direito eu tinha de acabar com tudo isso? – ele colocou as mãos na cabeça, em sinal de desespero. – Será que não entende? Ainda não percebeu? Eu sou um lixo! Eu matei minha mãe com a minha existência! Minha avó adoeceu porque eu estou vivo! Isaak perdeu a visão de um dos olhos porque nem pra morrer eu sirvo! Tudo que eu faço é destruir o que toco! Tudo que eu faço é trazer sofrimento pra quem eu amo! E mesmo sabendo disso, eu tive a audácia de vir ao seu encontro! Eu sequer sei como alguém tão insignificante quanto eu consegue causar tanto estrago! E tudo que eu mais queria era que você não precisasse lidar com tudo isso! Que você não fosse amaldiçoado com a minha presença! Que você não precisasse saber o quão nojento e asqueroso é seu filho! Mas eu falhei miseravelmente! Nem sequer sei por que achei que seria diferente! Afinal, eu não passo de um inútil, imprestável, intragável, um pedaço de carne barata e podre, um...
- Basta! – falei firme.
Eu abracei meu filho, que chorou forte em meu peito. Àquela altura, todos já estavam chorando, inclusive eu. Isaak estava abraçado a Milo, que afagava sua cabeça e me olhava, com um olhar de dor. Era muito difícil ouvir Hyoga dizendo aquelas coisas de si mesmo. Lixo? Insignificante? Imprestável? Não! Não! Não! Aquilo era tão distorcido, tão fora da realidade! Hyoga não podia continuar acreditando naquelas mentiras! Nada do que aconteceu foi culpa dele! Foi tudo uma grande tragédia, azar, infortúnio! Ele não podia se responsabilizar por tudo, achando que poderia ter mudado alguma coisa! Na verdade, ele foi a maior vítima! Ele foi quem mais sofreu! E mesmo assim ele queria me proteger? Que piada sem graça era aquela? A vida toda ele é quem precisou ser protegido e ninguém pôde fazer muito por ele nos momentos mais críticos! Eu não sabia de sua existência! Natássia teve uma morte precoce! E a senhora Valéria mal dava conta de si mesma! Hyoga se viu sozinho naquele mundo, tendo que assumir a responsabilidade da própria vida e da vida da avó de criação! Fraco? Onde aquilo era ser fraco? Ter sobrevivido por todo esse tempo e ainda ter cuidado da avó sendo tão criança, tão indefeso! O que ele achava que poderia ter sido feito se fosse forte? O que ele achava que era ser forte? Alguém poderia culpá-lo por querer conhecer o pai? Alguém poderia julgá-lo por isso? Ele era uma criança, pelos céus! Claro que queria conhecer o pai! Claro que queria encontrar alguém que lhe desse uma vida melhor, mais digna e segura!
Sentia meu coração bater descompassado. Situações como aquela, normalmente, me faziam querer fugir. Mas Hyoga chorava tanto no meu colo! Tudo que eu queria era protegê-lo! Se antes eu queria protegê-lo da possível ameaça externa, agora eu sabia que precisava protegê-lo muito mais de si mesmo! Ele devia pensar aquelas coisas horríveis o tempo todo. Ele devia se machucar tanto! Eu não permitiria que aqueles pensamentos continuassem! Já bastavam as feridas que vida fizeram em sua alma, ele não podia continuar se ferindo ainda mais!
- Meu filho... – eu desfiz o abraço, apenas para que ele olhasse pra mim. – Seu pensamento é tão distorcido e tão errado que fico até sem saber por onde começar! – respirei fundo, buscando forças. – Hyoga, pelos céus, você tem quatorze anos! Em que mundo você acha normal que alguém da sua idade proteja alguém bem mais velho como eu? Não é questão de força, meu filho! Mesmo que eu não tenha vivido coisas tão horríveis e dolorosas como você, eu tenho muito mais experiência de vida, muito mais recurso, muito mais maturidade! É você quem precisa ser protegido, meu filho! Tudo que você viveu, toda dor, todo sofrimento, todas as injustiças aconteceram, em grande parte, por você não ter alguém que pudesse lhe proteger naquele momento! E isso não é culpa sua, nem da sua avó, nem de ninguém! A verdade é que nem sempre a vida é justa! Às vezes, pessoas más se dão bem e pessoas boas sofrem, estamos todos sujeitos a passar por coisas ruins. Existem coisas que simplesmente não estão sob nosso controle, independente do quão forte somos, independente do quanto somos inteligentes ou capazes. Às vezes agimos, pensando ser o melhor, e depois sofremos consequências terríveis, justamente porque somos limitados e não temos como adivinhar o que vai acontecer. Sua mãe, por exemplo. Se ela sonhasse que morreria naquele naufrágio e deixaria um filho pequeno para trás, com certeza ela sequer teria partido da França, grávida. Se eu soubesse que sua mãe esperava um filho meu, eu jamais a teria deixado partir. Mas as coisas acontecem e a vida continua. E o que podemos fazer é nos recompor das perdas e danos, por mais difícil que seja, e seguir em frente, nos reinventar, crescer, aprender. Não é porque somos fortes que a vida fica mais fácil, muito pelo contrário. Por a vida ser tão difícil é que nos tornamos fortes. – parei um pouco, apenas para limpar as lágrimas que escorriam de seu rosto. – E foi exatamente isso que você fez, meu filho. Você se tornou forte pra continuar vivendo. Enfrentou todas as dificuldades que a vida lhe impôs até hoje e chegou até aqui, chegou até mim. Claro que o caminho que você trilhou foi horrível, doloroso e sofrido, mas ninguém pode julgá-lo ou culpá-lo por isso. Porque foi o que você conseguiu fazer! E agora, você pode receber a recompensa pelo seu esforço, meu filho! Pode descansar, porque agora você encontrou alguém que vai lhe proteger! Alguém que tem condições de lhe proteger! Você não precisa mais lutar contra o mundo sozinho! Agora que você me encontrou, eu estou aqui pra você! Eu estou aqui por você! Eu estou aqui com você! Não só eu, como Milo também! E isso vale igualmente pra você, Isaak. – virei-me pro outro jovem ao meu lado, que estava abraçado ao meu marido.
Afaguei sua cabeça e Milo soltou Isaak, que se agarrou em mim. Passei o braço por seus ombros, ainda com Hyoga em meu colo, abraçado do outro lado. Milo se levantou e foi em direção à cozinha. Não demorou para que voltasse com dois copos com água. Entregou um a Isaak e outro para Hyoga. Olhei pra ele, agradecido. Ele sorriu de leve pra mim e me deu um beijo nos lábios. Assim que Hyoga terminou de tomar a água, Milo tirou ele do meu colo e sentou-se ao meu lado, colocando Hyoga em seu colo, agora.
- Está um pouco mais calmo, meu filho? – Milo perguntou. Hyoga apenas abaixou a cabeça, o que fez meu marido suspirar. – Você ainda está pensando demais, meu pequeno.
- Vocês não entendem! Eu tenho vergonha do que eu sou! Eu não mereço a gentileza de vocês! – Hyoga levantou os olhos, ainda cheio de lágrimas. – Meu pai é tudo que minha mãe me disse e um pouco mais! E agora tem você, Milo! Sinceramente, se eu já não mereço o pai que eu tenho, que dirá ter você também! Se eu fosse vocês, não teria coragem de me apresentar como filho! Eu sou...
- Ssshhhiiii... – Milo colocou um dedo nos lábios de Hyoga, para que ele não continuasse. – Não diga essas coisas horríveis de si mesmo! Você não é isso que afirmou ser! É apenas um garotinho que não deu muita sorte até agora. – Milo segurou o rosto do meu filho. – Escuta bem o que eu vou te dizer; nada do que você passou define quem você é ou quem será! Você é quem define isso! Claro que tudo que passamos deixa marcas em nós, em nossa memória, em nossa alma. Mas é você quem decide o que vai fazer com isso! Você pode parar de viver e amaldiçoar a tudo e a todos, como também pode transformar todo sofrimento em força para se reerguer e continuar. Você pode se lamentar ou pode aprender com tudo que viveu e crescer, amadurecer! Claro, não é fácil! Eu sei muito bem disso! Quando criança, eu morei muito tempo nas ruas, sem pai e mãe! Mas eu decidi que não deixaria que as circunstâncias me definissem. Assim como vocês dois, eu lutei pra sair de onde eu estava e hoje alcancei tudo que eu mais sonhei! Não foi fácil, eu pensei em desistir muitas vezes, mas uma hora a recompensa vem! E a hora de vocês chegou!
- Mas...
- Se você for falar qualquer coisa ruim de si mesmo, pode parar! – interrompi. Hyoga abaixou a cabeça de novo, mas fiz questão de fazer com que ele olhasse pra mim. – Meu filho, você não tem ideia do garoto especial que você é. Sinceramente, tudo que eu vi de você, tudo que eu ouvi de você, tudo é o que eu sonhei que um filho meu e de Natássia seria. Pra te falar a verdade, eu nunca tive vontade de ser pai. Não tive um bom relacionamento com seu avô, apesar de não o odiar. Não que eu tivesse medo de me tornar como ele, mas não achava que levava jeito pra coisa. Afinal, não tive muito parâmetro do que seria um bom pai. Foi sua mãe que abriu minha mente para essa possibilidade. Aos poucos ela foi dizendo como ela imaginava que seria um filho nosso. E tudo que ela falava parecia tão maravilhoso, tão perfeito, que eu apenas queria que aquele sonho se tornasse realidade. E você é exatamente a realização desse sonho. Você é o combinado do que Natássia tinha de melhor e do que eu tenho de melhor. – coloquei uma de minhas mãos no rosto do meu filho. – Olha só pra você, meu filho. É tão lindo como sua mãe! Tem um coração tão grande que prefere sacrificar a si mesmo do que causar problemas pros outros. Sensível, carinhoso, amoroso, atencioso, protetor, educado, estudioso, disciplinado. Com quatorze anos e já fala quatro línguas! E olha que você estudou em casa com a senhora Valéria, imagina quando tiver acesso a uma educação um pouco melhor. Eu poderia citar mais uma dezena de coisas que pude observar em você nesse pouco tempo. E isso é apenas uma parte do que sei. Só isso já é suficiente pra me encher de orgulho, meu filho. E o que mais me deixa feliz é que, apesar de tudo que passou, você é esse garoto incrível. Sinceramente, se você fosse de fato um garoto rebelde, que odiasse tudo e todos, e não tivesse metade das qualidades que tem, seria compreensível. Mas você é simplesmente esse menino doce, super amável. Não tem por que você pensar essas coisas horríveis de si mesmo!
- Nada disso importa se tudo que eu faço é as pessoas que amo sofrerem. – ele falou, desviando o olhar.
- Está errado de novo! – dessa vez, Milo falou. – Você não tem noção da alegria que trouxe para as nossas vidas! Como eu te disse antes, diferente do seu pai, eu sempre sonhei em ter um filho. E quando você apareceu, tornou meu sonho realidade. Aliás, você é muito mais do que eu podia querer. Quem diria que eu teria um mini Camus como filho. – Milo deu uma risadinha, o que me fez sorrir também. – Ok, fisicamente você parece com sua mãe. Mas você não tem ideia de como seu jeito é idêntico ao do seu pai. O jeito de falar, o jeito de andar, até tem a mesma mania de arquear uma sobrancelha quando está desconfiado ou intrigado com alguma coisa. Não tinha como eu não te querer como filho! E, como se isso não bastasse, você trouxe Isaak pra nós! Eu estava esperando a gente terminar essa conversa pra te falar isso, mas seu pai e eu decidimos que vamos adotar Isaak! – meu filho arregalou os olhos, surpreso.
- Sério? – ele, pela primeira vez naquela conversa, mostrou um sorriso. Eu olhei para Isaak, que estava um pouco corado com aquela declaração. Baguncei seus cabelos e sorri pra ele, que me sorriu de volta.
- Sim! Agora vocês serão irmãos oficialmente! E eu vou realizar meu sonho de ser pai, não só de um, mas de dois filhos! E se você se parece com seu pai, Isaak já é muito mais parecido comigo. – dessa vez foi Isaak quem pareceu surpreso. – Eu não falei isso ainda, Isaak, mas você se parece muito comigo quando eu tinha sua idade. Raciocínio rápido, esperto, boa lábia, adaptável, sonhador. Cara! Como eu me enxergo em você! – Milo bagunçou o cabelo do jovem que estava ao meu lado.
- Tá enchendo muito minha bola! Vou acabar acreditando. – disse Isaak, fazendo todos rirem.
- É pra acreditar! O ponto é que vocês estarem aqui não é motivo de sofrimento nem pra mim nem pro Camus! Muito pelo contrário! Vocês são a realização de um sonho! Vieram para completar a nossa vida! E você, mocinho... – Milo virou-se para Hyoga. - ... vai parar de pensar essas coisas, a partir de agora. Porque você não trouxe sofrimento para ninguém! Eu não conheci sua mãe, acho que seu pai pode falar com mais propriedade que eu, mas pelo que ouvi sobre ela, tenho certeza de que você foi a maior alegria que ela teve na vida. Sua avó, então, nem preciso falar nada. Ela se derrete toda por você. Ela mesmo disse que você renovou a vontade dela de viver. As coisas ruins que aconteceram não foram culpa sua. Aconteceu de você estar lá no momento, mas não foi você quem causou nada daquilo. Pra falar a verdade, você sofreu tanto quanto todos os atingidos pelos acontecimentos. Então não tem por que você jogar toda a responsabilidade sob seus ombros. Estamos entendidos? – Hyoga não disse mais nada, o que fez Milo continuar. – Então, será que agora Isaak pode continuar com a explicação?

Continua...

Doce Fruto de um Passado AmargoOnde histórias criam vida. Descubra agora