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BRIANNA ABERNATHY. Dêem ⭐
AMEAÇADOS

Com um suspiro de cansaço, olhei pela janela do meu quarto novo em
Manhattan.
Haviam se passado dois dias desde aquele trauma. Dois dias que meu
pai agia como se nada tivesse acontecido.
Dois dias que nem precisei desfazer as malas. Estavam todas
empilhadas ali no canto, reluzindo o selo do alojamento da Libert University,
o motivo pelo qual qualquer um expressaria alguma reação, mas a minha cara
parecia estar petrificada.
Era uma universidade nova, pessoas novas, vida nova. Tentei me
animar de todas as maneiras possíveis, mas parecia ser impossível, porque eu
via o homem morto todas as vezes que fechava os olhos.
Todas as vezes.
Não tinha controle sobre aquilo, não conseguia parar, mesmo que quisesse. Nada adiantava e não adiantaria por longos meses, supunha, porque
minha atenção lutava contra tudo que eu insistia em fisgar.
Olhei para os móveis impecáveis, meticulosamente organizados, como
se eu estivesse em um quarto de hotel decorado em tons neutros, sem
personalidade.
Fechei os olhos. Eu ainda o via.
Talvez meu telefone me tire dessa merda.
Desbloqueei a tela.
Mil e uma mensagens em grupos, minha última conversa há algumas
horas com Mavi, na qual eu escondia o porquê do meu nervosismo refletido
na voz trêmula dos áudios, e...
Meg.
A menina nova com quem estive conversando recentemente, quer dizer,
hoje. Iniciamos a troca de comprimentos sem graça pela manhã. Ela seria
minha colega de quarto no alojamento e, para nos conhecermos melhor,
sugeriu vir me buscar mais tarde.
Hospitalidade, pelo menos, parecia existir. Organização também; a
iniciativa de comunicação entre calouros e veteranos provava isso. Ter
alguém para ajudar sempre era bom, afinal tudo que é novo assusta.
Só não mais do que aquele meu trauma recente, e para provar isso, lá
estava ele, de novo.
John Walker...
Suspirei o nome que ouvi meu pai repetir inúmeras vezes em suas
últimas ligações, contando aos amigos sobre seu triunfo.
Quem eram aqueles caras e o que queriam com aquela merda toda?
Roubar o carro? Coagir a nova autoridade?
Enquanto me rendia às paranoias, a noite caía lá fora e o silêncio do
meu quarto, antes rompido apenas pelo sussurro do vento contra a janela, deu
lugar ao som de uma discussão acalorada.
Era a voz do meu pai, mas parecia ter mais alguém.
Quem diabos está aqui?
Me agarrei à curiosidade e desci até a sala. No meio do ambiente meio
morto, adornado com móveis pesados e cortinas escuras que impediam a luz
de entrar, reconheci a visita. Já tinha o visto em alguma reportagem na TV.
É o antigo delegado do Brooklyn.
O homem sobre o qual meu pai falou ter sido amolecido. O que deixou
o lugar virar um caos comandado por criminosos.

Ele tinha rugas profundas marcadas pelo tempo, ainda usava a farda,
parecendo ter orgulho dela. Os fios grisalhos só não eram tão evidentes
quanto a roupa alva por baixo do casaco, e ele encarava meu pai com uma
expressão de urgência e preocupação.
Pelo pouco que ouvi, já tinha certeza de uma coisa:
Matar aquele cara havia sido um erro.
- Não estariam pedindo seu afastamento, se não entendessem o que se
passa - o velho exclamou. - Vivo aqui há anos, Abernathy, e devo dizer,
você se colocou na mira quando eliminou o meliante. Você errou.
- Que autonomia você tem para me dizer o que é certo ou errado? Ou
sobre como agir ou o que fazer a seguir? - meu pai vociferou. - Minha
vinda a Nova Iorque esteve sendo preparada há meses. Não vou retroceder
por ter matado um delinquente, e um homem fardado com esse símbolo no
peito não deveria estar tentando me aconselhar o contrário! - apontou.
- Sua conduta não foi correta, você sabe disso! Continuar aqui é
colocar a operação que tanto defende em risco.
- Não é correto ter que ouvir você me dizer o que fazer! Não sou
sujeito a controle, gozo de independência funcional e técnica como
autoridade, onde quer que eu atue!
- Leu o ofício, sabe do que se trata. Não estamos falando sobre
convicções em indiciamentos, não há interferência em seus enquadramentos
técnicos. Não é a esse tipo de controle que está sendo submetido, Abernathy.
- Então, pelo visto, mudaram os termos e se esqueceram de me
atualizar.
- Sua carreira é submetida a chefes maiores, como a de qualquer
outro. Sabe que não tem cacife para peitar a hierarquia.
- Assim como sei que não vou ouvir um exonerado - soltou. - Sou
seu substituto, Jamar. Sou o martelo novo do juízo, a ferramenta que vai
garimpar esse lugar até os confins da terra, se possível, para encontrar e
retirar a podridão entranhada a ela. - Seus olhos pareciam flamejar. - Eu
sou o pioneiro, o escolhido para começar a grande limpeza em Nova Iorque!
É o cúmulo do ridículo ter vindo aqui me dizer o que fazer.
- Tenho conhecimento da dimensão da operação e da sua posição
quanto a ela, Abernathy. E é por isso que medidas apaziguadoras como essa
devem ser tomadas. Não sou eu quem está impondo regras e, como você
mencionou, é meu substituto, logo está sujeito às ordens dos superiores tanto
quanto eu. - O velho semicerrou os olhos. - O cúmulo é querer ignorar isso, mesmo sabendo que é para a sua segurança, para o andamento do que
tanto preza.
Sobre o que eles estão falando? Que tipo de operação é essa?
- Vou fingir que acredito nisso. Só não sei se consigo superar você. -
Meu pai sorriu sem vontade alguma.
- Ninguém está ferindo suas garantias estatuídas. Continuam intactas
em suas mãos, mas é visivelmente promissor acatar as ordens, se não quiser
perdê-las como eu perdi.
- Perdeu, porque não aguentou o tranco e se rendeu à pressão dos
criminosos. É um merda que não deveria estar usando essa farda! - falou e o
Senhor Jamar fechou os olhos, como se estivesse se segurando.
Depois de suspirar, ajeitando a roupa, ele retornou ao discurso, como se
não tivesse ouvido a última frase.
- Você mal pisou naquele lugar e arrancou a peça central dos jogos
deles. Os jogadores vão cobrar a perda do peão.
- Não tenho medo de criminosos.
- Estamos falando de uma rede perigosa, Abernathy. Eles trabalham
nas sombras, lutam entre si sem que ouçamos o som de uma bala cair ao
chão. Em seus círculos, há muitos na linha de frente da justiça, muitos no
poder, sentados em tronos da lei. Tem muitos que se vestem como nós e que
ajudam a manter o crime no comando para benefício próprio.
- Por que não cita seu nome? Você é o exemplo vivo do que é a
milícia. - Ele deu alguns passos na direção do meu pai.
- Eu posso ter falhado como autoridade, mas estou fazendo o certo
como posso, e te alertar faz parte disso. Você escolhe por quem quer ser
morto. Pelo sistema, por não acatar as ordens e colocar tudo a perder, ou
pelos abutres do Brooklyn, que querem sua cabeça.
Aquela fala foi o que eu precisava para me aproximar, sentindo um nó
de medo apertar minha garganta. Se pegassem meu pai, eu daria adeus à
esperança que me moveu até ali.
Daria adeus de vez para a minha mãe.
- Pai, você precisa ouvir o que ele está dizendo. Você prometeu que
procuraria por pistas sobre a mãe aqui. Se algo acontecer com você por causa
disso, nunca saberei o que aconteceu com ela! - soltei em tom de súplica,
minha voz tremendo com a urgência das minhas palavras.
Mas parecia ter me esquecido de que ele estava nervoso. E quando meu
pai ficava nervoso, eu não deveria me aproximar.

- O que você está fazendo aqui, garota enxerida? - Ao som do
timbre sombrio dele, o velho me fitou e decidiu intervir.
- Ele não tem escolha. Já foi decidido, eu só vim reforçar - falou, me
dando uma ponta de alívio.
Bem naquele momento, vi, pela janela, um carro deslizando pela pista e
a buzina suave bateu em meus ouvidos quando estacionou.
- Parece que sua carona chegou - o senhor falou, olhando para o
símbolo na minha bolsa. - Libert University? - Acenei e sua expressão
estarreceu. Ele olhou de mim ao meu pai, mais sério do que antes. Os dois
pareciam conversar com um único olhar, até que ele pigarreou. - Não abra a
boca a não ser em sala de aula, mantenha distância dos garotos e procure não
frequentar as festas. - Piscou para mim. - Bons estudos!
Bons estudos para quem? Eu não teria sequer uma boa noite de sono,
depois de ouvir parte daquela conversa.
Meu pai fez merda ao matar o criminoso, agora está correndo risco de
vida e não quer recuar.
Era o que me faltava.

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