Meus filhos

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Dizem que quando se está à beira da morte, um filme passa diante dos nossos olhos. Todos os momentos, bons e ruins. Eu deveria rever minha infância e me lembrar das poucas vezes que ouvi a risada descontraída da minha mãe. Deveria lembrar da primeira vez que peguei um avião deixando a cidade que eu tanto odiava para trás. Deveria me lembrar do meu primeiro dia em Nova York, cheia de sonhos e acreditando que tudo mudaria. Deveria me lembrar do primeiro ano novo que passei na Times Square comendo cachorro quente e vendo os fogos iluminando os céus, mas eu não vi nada disso.

Eu realmente vi os melhores momentos que já vivi, só não sabia que seriam todos os que eu vivi com o Jay. Vi a primeira vez que ele me abraçou, mesmo que na época eu tenha o afastado. Lembrei do gosto do licor em seus lábios no nosso primeiro beijo. Lembrei dele dizendo que eu era uma iguaria rara quando tentaram me humilhar. Lembrei dele dizendo que me amava pela primeira vez e da forma que seus olhos pareciam esverdeados quando estávamos na praia. Lembrei do calor dos seus lábios mesmo depois de enfrentar uma nevasca e da forma que ele suspirava no meu ouvido toda vez que fazíamos amor.

Talvez seja real que só percebemos o valor de algo quando o perdemos e eu estava prestes a perder o que eu mais amava. Quando vi o Kennie entrar com aquela arma, meu olhar vagou pelo cômodo e encarei o Jay no cômodo ao lado, tentando sinalizar com o olhar para que ele fosse embora. Não me importava com o que acontecesse comigo. Sempre acreditei que minha vida estava fadada a alguma tragédia e morrer nas mãos de um psicopata seria como cumprir algum tipo de profecia.

Mas o Jay não. Ele nasceu em berço de ouro, sempre curtiu a vida com seus amigos e com qualquer garota que pudesse trazer diversão a ele, mesmo que fosse só por uma noite. Ele sempre foi alegre, cheio de vida e não merecia passar por nada do que estava acontecendo. Ele não merecia correr esse tipo de perigo e eu só queria gritar para que ele saísse dali, mas no olhar decidido dele eu sabia que ele não me abandonaria e eu amava e odiava isso nele ao mesmo tempo.

Como ele podia segurar minha mão vendo que estou até o pescoço na areia movediça? Eu não sabia, mas ele era o mesmo homem que atravessou uma nevasca por mim e quando o vi alcançando um cano solto embaixo da pia onde ele banhava os cachorros arregalei os olhos. Mesmo não conseguindo dizer uma palavra, se é verdade que os olhos falavam, os meus estavam gritando para que ele saísse dali e nunca mais cruzasse meu caminho novamente.

Eu estava mudando o destino dele, minha má sorte estava contaminando seu caminho e se ele fosse esperto fugiria, mas quanto mais ele se aproximava do Kennie que estava distraído demais olhando para mim, mais eu percebia que não havia nada que ele não faria por mim e me assustei pois por tanto tempo eu tive medo de enlouquecer por amor, mas agora ela nos olhos do Jay que eu enxergava a loucura e tive medo. Até onde ele estava disposto a ir, por mim?

Um rangido no piso de madeira foi o suficiente para que Kennie se virasse apontando a arma para o Jay e se não fosse um vulto negro que surgiu do nada e pulou sobre o homem armado, essa história teria um fim diferente. O próximo barulho que ouvi foi o dos punhos daquele homem vestido de preto se chocando contra o rosto do Kennie repetidas vezes até que ele não tivesse mais forças e largasse a arma.

Senti os braços do Jay ao meu redor e não conseguia ao menos reagir. O homem misterioso alcançou uma das correntes espalhadas no chão e prendeu as mãos de Kennie para trás que estava inconsciente. Haviam tantas perguntas na minha mente, mas eu só conseguia me concentrar no choro do Jay. Ele parecia desesperado e eu só conseguia me concentrar no cheiro do shampoo usado para dar banho nos cachorros que estava exalando da roupa do Jay.

– Rachel, você está bem? – Jay perguntou, preocupado e eu estava tão em choque que não conseguia responder.

Como poderia dizer que estava tudo bem quando ele quase morreu por mim? Eu queria gritar com o Jay, perguntar se ele estava louco. Queria socar o peitoral dele mesmo sabendo que ele provavelmente não sentiria nada. Queria dizer que estava tudo acabado e que se ele ia continuar agindo como se fosse o super homem então deveríamos terminar ali, mas eu não consegui dizer nada disso e quando finalmente foquei em seus olhos preocupados, suspirei.

Brincando com FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora