CAPÍTULO 63

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           WILLIAM CARDINALLI

— Meu pai deve ter contado a versão dele, imagino eu. Mas a minha é um pouco diferente. — Não a interrompo e espero no seu tempo. — Conheci Gael indo à biblioteca, procurando livros para passar o tempo. Ele sempre puxava assunto, falava sobre os livros que estava lendo, e eu contava sobre os meus. Essa amizade durou meses e eu confiei nele. — Sussurrou a última palavra. — Acabei contando como minha mãe era ausente, como meu pai vivia trabalhando ou viajando, e que era Camélia quem cuidava de mim. Quase deixei escapar sobre Maria. — Revelou, parecendo angustiada, e percebi quando ela deslizou a mão pelo meu peito. Cheguei a levantar minha mão para afastar os dedos dela, mas então ouvi um choramingo baixo e resisti, deixando minha mão cair ao lado do corpo. — Meu pai descobriu que eu contei algo a Gael depois que ele começou a frequentar nossa casa mais vezes do que o aceitável, e às vezes sem aviso, quando eu estava completamente sozinha. Em uma dessas vezes, ele viu Camélia. Eu não entendi, mas ela parecia conhecê-lo. Ele saiu de lá perturbado. Meu pai chegou em casa, e Camélia contou a ele. Rapidamente, eles juntaram nossas coisas e voltamos para o Vale do Café.

— Maria estava com vocês? — indaguei, curioso sobre o papel dessa mulher na família de Natália. Eu as investiguei, mas não encontrei nada, o que me dá fortes indícios de que os nomes que elas usam são falsos.

— Sim, a Maria sempre está conosco. Nunca entendi bem o porquê, sabe? Ela não trabalha para o meu pai. Não sai de casa. Mas está sempre conosco. Minha mãe não sabe da existência dela, o que só me trouxe mais dúvidas do que certezas. — Revelou. Vou me lembrar dessas informações para investigar essa história a fundo.

— Como sua mãe não sabe sobre ela, se ela mora na sua casa?

— Minha mãe nunca fica mais do que dois ou três dias em casa. Mesmo quando eu era criança, ela sempre inventava viagens e coisas para fazer, me deixando na companhia de Camélia. Eu só fui conhecer Maria aos 11 anos. Antes disso, não sei se ela já morava conosco, mas desconfio que sim. Uma pessoa não iria aparecer na sua vida do dia para a noite, não é?

— Tem razão, não iria.

— Foi o que pensei. Elas disseram que Maria estava se escondendo de alguém, mas nunca mais tocaram no assunto. Voltando ao que eu dizia... — Continuou a tocar meu peito por cima da camisa, primeiro com as pontas dos dedos e depois com a palma da mão, em um tipo de massagem. — Mesmo depois de trinta dias, meu pai estava meio ressabiado, e quando pensou em relaxar, Gael ligou e contou que seu pai mandaria alguém para minha casa. Ele estava desesperado, mandou eu ligar para a polícia e me esconder. Ele não sabia o que o pai dele iria fazer comigo, mas não seria nada bom. Eu liguei para o meu pai e implorei para ele chegar rápido. Contei a Camélia sobre a ligação de Gael, e ela se assustou, mandou eu me apressar e ir me esconder na casa delas. Eu estava na cozinha, tentando pegar algo para me defender e me trancar junto com elas, já que, para ter acesso à casa delas, teriam que quebrar uma parede. Não tive tempo nem de pensar. O homem já estava às minhas costas. Ele me segurou por trás. Eu lutei, juro que tentei lutar com ele. Mas não consegui, William. Ele era muito forte. — Explica, aos prantos, apertando minha camisa com força. Eu ranjo os dentes para controlar a dor de sentir suas unhas resvalando na minha pele toda fodida.

— O que aconteceu?

— Eu comecei a gritar, ele cobriu minha boca, e eu mordi o dedo dele. Ele me jogou contra o balcão da ilha, e a dor que senti quando bati com a barriga na pedra fez lágrimas se acumularem nos meus olhos. Um grito desesperado escapou dos meus lábios, chamando a atenção de Camélia. Ele a viu e pareceu reconhecê-la, pois começou a correr dela. Camélia não parecia mais uma mulher fofa e carinhosa; ela parecia letal. Ela trocou socos e chutes com o homem de um jeito que eu só via em filmes ou nas aulas de Krav Maga que assisti no colégio. O que distraiu Camélia foi Maria saindo do quartinho. O homem a viu e gritou algo em uma língua estrangeira, parecendo conhecê-la. Maria me agarrou pelos braços e me levou para a sala. Estávamos subindo as escadas quando o homem conseguiu derrubar Camélia, acertando algo em sua cabeça. Ele nos seguiu e derrubou Maria no chão, esfaqueando-a duas vezes. Para impedi-lo de matá-la, eu montei em suas costas e dei socos em sua cabeça e rosto. Maria aproveitou a distração, tomou a faca dele e a jogou para longe. Foi então que ele me derrubou no chão e deu um tapa na minha cara. Disse que iria me estupr●r. Ele me suspendeu do chão e falava palavras que eu não conseguia entender, pois sentia um zumbido nos ouvidos. Meu rosto esquentou, minha cabeça girou, e ele apertou meu pescoço. Eu estava perdendo os sentidos. Vi sangue em minhas mãos e lembrei de Maria. Ela estava muito mal; o sangue escorria de sua pele. Eu não sabia onde ela tinha sido atingida e cheguei a pensar que ela tinha morrido. Eu chorei e gritei até ficar rouca, mas o homem continuou a me sufocar. Meus sentidos estavam me abandonando; minha visão ficou turva, e o ar não chegava aos meus pulmões. Eu estava morrendo, William. — Ela solta um gemido agoniado, e eu passo a mão por seu braço, tentando de alguma forma mostrar que estou ali. — Até que meu pai chegou sorrateiramente e o derrubou. Não sei com o quê nem como, ele só mandou eu correr e não olhar para trás. E eu corri, corri muito. Eu me tranquei no quarto dele e me enfiei dentro da banheira. — Natália chorava tão alto que sua dor me comoveu. Puxo-a para cima do meu corpo e a deixo deitar sobre mim. Eu a abraço forte e beijo seus cabelos.

— Você está segura agora, bella mia. Eu juro que ninguém vai machucar você. — Prometo, e irei cumprir. Ninguém irá machucá-la. Pelo menos não fisicamente. Agora nós dois, é outra história; nosso caso é uma tragédia iminente, e nada poderá parar ou mudar o que vai acontecer. Mesmo que eu desejasse com tudo o que tenho.

— Eu vi Maria e Camélia no chão. Pensei que elas tivessem morrido. Achei que as tinha perdido para sempre. Entrei em um estado de letargia; só sabia chorar e tremer. Eu vi ele esfaqueando Maria, William. Eu vi ele matando-a, assim como vi ele desmaiando Camélia. Se meu pai não tivesse chegado, se não tivesse feito ele me soltar, estaríamos todas mortas. Quando meu pai esteve no meu quarto e depois um médico foi me ver, eu pensei que tinha morrido. No outro dia, quando acordei dos sedativos, a primeira coisa que fiz foi descer as escadas, e estava tudo limpo e arrumado, nada quebrado. Não havia manchas de sangue na parede, o fogão destruído ou a televisão da sala quebrada. Não havia faca no chão. — Ela solta um soluço sofrido, e eu esqueço minha dor, passando minhas mãos por suas costas.

— Eu fui até a cozinha e lá estava Camélia, sorrindo. Eu tentei entender o que tinha acontecido. Ela segurou minhas mãos e disse que havia coisas que deveríamos esquecer e trancar em nossas cabeças, que deveríamos fingir que não existiram e que, assim, a dor e o trauma iriam embora. Ela me pediu para ser uma menina corajosa e fingir que nada aconteceu, que foi apenas um pesadelo. Eu concordei com a cabeça e, quando meu pai quis falar sobre o assunto, eu fingi que nada havia acontecido. — Outro soluço escapou de seus lábios. Vê-la sofrer me deixava frustrado. — Então eu fingi não lembrar da invasão, dos tapas que recebi, da dor que senti, da luta entre Camélia e o homem para tentar me salvar. Fingi não lembrar das facadas que Maria levou, fingi esquecer da destruição da casa, dos gritos que Maria soltou, das palavras que disse ao me chamar de filha, de dizer que me amava, que queria mais tempo, que tinha feito tudo certo. Fingi não lembrar de Camélia a chamando por um nome estranho, gritando que ela iria resistir, que a filha dela precisava dela. Eu fingi não lembrar de nada. Mesmo sem esquecer. Uma coisa que aprendi naquele dia, William, é que sou ótima em fingir. — Ela fungou e escondeu o rosto no meu pescoço. — Mas sou péssima em esquecer. — Choramingou, soluçando.

— Sabe qual é meu maior medo? — Não pergunto, pois sabia que eu não gostaria de saber a resposta, mas ela disse mesmo assim. — Meu maior medo é não conseguir fingir mais para você. — Ambos ficamos em silêncio. Natália, em algum momento, adormeceu, mas minha mente não me deu descanso, pois as palavras dela ecoavam dentro de mim: “meu maior medo é não conseguir fingir mais para você”. Passo as mãos pelo rosto; a dor já nem é mais sentida, apenas o desespero do que estou fazendo aqui com ela. De como poderia resolver tudo isso, sem feri-la, sem nos ferir.

— O que eu faço com você, Natália? — Indago em um tom de voz baixo. — O que você está fazendo comigo, porra... Eu nunca desejei o que está me fazendo ansiar, eu nunca senti o que estou sentindo por você... Não... não posso...

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