Era chuva de mais para o meu pobre guarda chuva

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Capítulo 35



Tô aproveitando cada segundo antes que isso aqui vire uma tragédia...


- Pitty




O silêncio é algo que não me incomoda. Geralmente não tenho problema nenhum com a falta de vozes e barulhos aleatórios como as pessoas costumam ter. A quietude que se formava quando estava com Thomas era devido aos beijos e afagos que dávamos um ao outro, e quando não era por isso, era uma mudez confortável e boa, daquelas que não é preciso de vozes, apenas a presença um do outro. Era uma das coisas que eu mais praticava e me sentia bem fazendo isso. Até agora.



Sentia um enorme abismo entre nós. Era como se fôssemos apenas sócios com alguns tipos de benefícios a mais.



Havia um festival de música em uma outra cidade e teríamos que ir de excursão com a orquestra. Era um dos eventos que eu mais gostava de ir, exceto que hoje, sentia meu coração irrequieto no seio.



- Você toca trompete?



Perguntei extremamente surpresa quando encontrei o estojo eimediatamente identifiquei o instrumento em baixo da cama de Thomas.



- Hmmm, é... Faço algum barulho.



Como sempre, ele nunca dizia que sabia fazer alguma coisa. Ou ele gostava de elogios, ou era um perfeccionista extremamente chato.



- E por quê você nunca me disse isso antes? Inquiri chateada.


- Porque não achei que fosse importante... Eu parei as aulas a muito tempo atrás...


- E por quê não volta então?


- Porque... Não sei porque.


- Vamos, toca pra mim... Quero ouvir o som desse trompete.


- Bia...


- Se você não tocar, vou ficar uma semana sem deixar você me tocar.


- Você sabe como barganhar...



Ele pegou o trompete e mexeu nos orifícios regulando alguma coisa que não sabia o que era. Thomas colocou uma surdina no instrumento e o som ficou bem mais baixo do que seria sem o tal aparelho. Comecei a ouvir ele tocando e fiquei pensando o porque de ele não ir mais nas aulas. Óbvio. Ele não precisava mais.



- Você sabia tocar esse tempo todo e nunca pensou em entrar para a orquestra? Vociferei.


- Bia... Eles são melhores que eu...


- Depois de todos aqueles ensaios assistindo a orquestra, nunca te ocorreu de ao menos uma vez tentar tocar junto? Você desistiu sem ao menos tentar, é a mais pura covardia que já ouvi - disse incrédula.



Ele ficou em silêncio por alguns minutos e baixou a cabeça.



- Você vai comigo no próximo ensaio e não para ficar na plateia, mas comigo no palco - decretei.



Ele largou o trompete na cama, levantou-se e segurou as minhas duas mãos. Ficamos nos olhando sem piscar. Ele chegou perto do meu ouvido e disse - Obrigado...



- Pelo quê?


- Por acreditar em mim...



Thomas sorriu e me beijou. Eu o amava mais que tudo, mas não iria mentir, ele realmente sabia tocar, e tocava bem. Eu estava feliz de mais em ter alavancado a sua auto estima, a sua confiança de que poderia ser bem mais do que um mecânico reformador de mustang. Porque na realidade ele era bem mais do que isso, só que ninguém sabia, ainda.



O ônibus chacoalhou e em segundos sai daquela doce lembrança de quando eu fiz ele entrar na orquestra.



Estávamos indo ainda para o festival de música. Era tão boa aquelas recordações que eu não queria sair dali, do meu subconsciente mostrando-me que alguma coisa boa na vida eu tinha feito, fazê-lo tocar na orquestra. Era uma das poucas coisas que fiz na vida que me deixava orgulhosa, saber que tinha conseguido extrair o melhor dele para o mundo.



Mas extrai também o seu pior. Eu havia criado um monstro no nosso relacionamento achando que era um animal doméstico. Eu e ele mal conversamos no trajeto da ida e talvez algumas pessoas perceberam que entre nós não estava tudo tão bem quanto uma partitura de Beethoven. Eu precisava fazer alguma coisa que fizesse sentir-me aquecida, sentir que ainda pertencíamos um ao outro. Peguei a sua mão e fiquei acarinhando pelo resto do caminho da vinda. Depois escorei minha cabeça no seu ombro e ele devolveu o carinho massageando a minha mão. Mas ainda sim eu o sentia distante. Falamos tanto dos negócios que agora era tudo o que tínhamos, uma mini empresa. Aquilo começou a envenenar de tal forma que eu me fechei aos poucos sem perceber. Um silêncio aqui, outro lá e já estava feita o grande buraco que estava me auto enterrando.



Então eu fiz a coisa mais comum e estúpida que todas as mulheres fazem: o tratamento do silêncio. Esse é o nosso problema, achar que todos pensam como a gente.



- Você tá braba?


- Não.


- O quê você tem?


- Nada.


Silêncio.



Ele ficava parado ao meu lado sem ação. Eu queria dizer a ele que de jeito nenhum estava tudo bem, as acima de tudo, queria que ele percebesse que alguma coisa estava errada conosco... Nesses últimos dias, Thomas mal me tocava, e quando conversávamos era só sobre lucros e despesas. DEFINITIVAMENTE NADA ESTAVA BEM. Mas o quê eu fazia? Permanecia em silêncio. Eu precisava sentir que ele ainda me amava. Precisava sentir que ele me queria, mas... Nada acontecia. Nem um beijo, nada.



Chegamos na minha casa aquele dia e ficamos assistindo televisão. Lado a lado, nenhuma carícia, nada. Até que eu não aguentei e o beijei. Instantaneamente ele me beijou de volta e ficamos assim até o filme terminar. Eu sentia falta dele mais do que nunca, eu precisava de mais, eu procurava em seus lábios o calor, mas eu sentia que ainda estávamos distantes mesmo a milímetros de distância em que nossos corpos se encontram. Mas eu não poderia fazer nada. Cada despedida era um calafrio, um medo de que nunca mais iria ver o seu rosto de novo. Uma dor apontava bem no canto do seio e eu estava completamente entorpecida quanto ao nosso amor.



Era como tomar vacina, você mal consegue sentir a agulha penetrando a epiderme, e só percebe que aquele fino objeto saiu do se corpo porque a enfermeira coloca um algodão no local. Mas depois ao chegar em casa aquilo começa a doer, o líquido começa a penetrar nas suas entranhas e daqui a pouco começa latejar tanto que você acaba dando um pulo quando alguém inocentemente encosta do seu braço. Então aquilo que você julgava que faria bem, na verdade tornou-se um problema de saúde.





Capítulo 35, Outono em mim


Outono em mimOnde histórias criam vida. Descubra agora