Antônia bateu o ponto exatamente às quinze horas, todos os dias eram assim, dificilmente ela fazia hora extra, chegava sempre dez minutos adiantada e saia exatamente às quinze horas. Trocou as roupas no banheiro retirando a touca de proteção dos cabelos. Colocava todo o material que devia e o retirava um a um, assim o cheiro de comida não impregnava em seu corpo. Fazia quase oito meses que estava trabalhando no restaurante, que não era pequeno, era até grande e servia almoço para muitas pessoas, porém era um trabalho quase mecânico, como ajudante de cozinha, Antônia fazia a mesma coisa esses meses todos, em que o cardápio variava muito pouco e cada dia da semana seguia determinadas regras. Totalmente diferente do que exerceu em Cântico, porém precisava de emprego e não teve muitas chances de escolher algo nos mesmos moldes de outrora, e sequer sabia se conseguiria, a experiência durou pouco, ela era jovem demais.
Saiu do restaurante na grande rua, o estabelecimento ficava entre um grande prédio de um banco e uma galeria de lojas. Caminhava rapidamente pela rua treze de maio, que aquela hora do dia era sempre muito quente, o sol forte em todo seu esplendor, por isso mesmo buscava andar debaixo das marquises onde pegava alguma sombra. Mas em Campo Grande parecia que todo mundo tinha aquela mesma ideia, e por isso, invariavelmente trombava nas pessoas. Continuava sua caminhada rápida, tinha poucos minutos para chegar, embora também tivesse poucas quadras para percorrer, até a rua catorze de julho, onde ficava a agência e ela fazia alguns bicos de modelo ainda. Teria um ensaio no parque das Nações Indígenas e iria para lá da agência, onde se maquearia. Quando voltou para Campo Grande, a principio havia pensado apenas em continuar a "carreira" de modelo fotográfica de onde havia parado em Curitiba, mas tal qual na cidade fria do Paraná, Antônia não conseguia grandes trabalhos, por isso correu atrás de um emprego e conseguiu como ajudante na grande cozinha do restaurante no centro da cidade.
Na agência, como o previsto se maqueou e saiu de lá com algumas outras modelos. Chegaram no parque Das Nações, quase no fim da tarde. Antônia não ia até aquele parque desde a adolescência, lembrava-se bem. Quando voltou para Campo Grande nada de diferente fez, que não fosse trabalhar. Ela e algumas outras modelos foram para um píer no parque, de lá Antônia avistou o grande lago que se estendia por ele. Não era tão grande, profundo e nem havia correnteza, mas era inevitável não se lembrar do rio Canção. Só a visão daquele lago já a deixava aflita, sentia um aperto no peito e uma falta de ar terrível. Poucos dias se passaram desde que se fez um ano que o fatídico dia aconteceu. Um ano e Antônia fechava os olhos e ainda sentia toda a água, a pressão, a falta de ar, o desespero em voltar para a superfície.
Pior do que toda a agonia vivida embaixo da água, foi o desespero de acordar no hospital, de saber que Lavínia morreu e na tentativa desesperada de ir até seu enterro, dar de cara com uma Vitória completamente destruída pela tristeza de perder a filha mais nova. Saiu do cemitério com os gritos de Vitória a expulsando. Por que Lavínia fez aquilo? Antônia se perguntava isso todos os dias assim que acordava, passava muitas noites sonhando que estava embaixo da água e Valentina não aparecia para salvá-la, acordava sempre empapada de suor, ofegante, em pânico e se perguntava novamente: Por que? Lavínia era tão esclarecida, vivida, viajada, por que simplesmente não deu tempo ao tempo? Acalmar o coração, os sentimentos, por que ser tão impulsiva e destruir a vida de todo mundo a sua volta? Quando começava a se questionar todas aquelas coisas, inúmeras vezes se pegou com uma certa raiva de Lavínia, que ela tentava a todo custo enterrar, não era raiva que deveria sentir, mas era muito mais forte do que ela poderia sufocar.
Já era tarde da noite quando foi deixada na agência e seguiu a pé até sua casa. Trabalho, agência e casa não eram longe um do outro. Na rua Dom Aquino, em um prédio antigo de seis andares, Antônia subiu as escadas até o terceiro e abriu a porta do apartamento em que morava dividindo com mais três garotas. Sempre que entrava naquele apartamento grande, antigo, e se dirigia até seu quarto, repassava na cabeça os momentos que a fizeram chegar até ali.
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Destino Insólito (Romance Lésbico)
RomanceValentina é uma mulher de 44 anos que administra uma produção de café na pequena cidade de Cântico no interior do Paraná. Leva uma vida tranquila ao lado do marido Roberto e do filho adolescente João Pedro. Mas para ter essa vida tranquila, abriu mã...