14 - Felipe

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Aaah! Mais um dia começando. Vai arrasar.

Toda a rotina está calculada: banho rápido, enxaguar os dentes, pão com manteiga e água. A barba posso deixar; ainda não está muito grande. Entre tudo isso, sempre que o Paulinho está em minha casa, ele fica correndo no meio. Quando estou só faz uma falta a bagunça do moleque! Tenho que falar para o vento.

Espera! Ontem o Paulinho veio para minha casa. Vou até o quartinho dele, cuja porta está aberta, e ninguém está deitado no colchão.

— Paulinho! Pára de se esconder, moleque! Ô, PAULO! PAULOOO!

Onde está? Jogo o colchãozinho para cima, arregaço a porta do roupeiro, bato a janela aberta no último, reviro a bagunça do lado do berço. Ninguém. Saio rápido para o quintal dividido entre minha casa e a do vizinho. Ele, que também mora sozinho, sai para estender algumas camisas no varal.

— Cara, você viu o Paulinho por aí? — digo com mais calma.

O senhor não fala muito, mas desta vez apenas acena que não com a cabeça.

— Beleza. Timão hoje vai arrebentar no jogo, hein! — falo ao ver a camisa mais top que ele tem: a do Barça. — Cinco a um.

O vizinho esboça um sorriso, e só. Já é alguma coisa. Se eu não estivesse ocupado pegaria ele para erguer alto e colocá-lo de volta ao chão, só de zoação. Vou pelo corredor do lado da casa dele para sair à rua, e meu telefone toca. É a tia Gi.

— Rapaz, que pai desnaturado! O Paulinho tá aqui pedindo doce, falando que você não dá nada pra ele comer desde ontem.

— Ah, é? Segura ele aí, tô indo buscar. Tô levando aquele chinelo. Pode falar pra ele, tá, tia?

Por fora estou rindo, mas a vontade é realmente descer o chinelo no lombo desse moleque. Que conversa é essa de não dou nada para ele? O pequeno ainda está aprendendo a falar, e já manda uma dessas pra parente? Só pode estar de zoação. Se bem que a situação não está muito boa, mas isso não precisa ser sabido fora de casa. E ele só fala isso para a tia Gi porque ela, por ter uma condição financeira boa, dá o que ele quer. Assim ficará mal-acostumado; um bobão, como a mãe dele.

— Ah, tia, mais tarde eu passo aí, depois do trabalho, beleza?

— Pra mim, tudo bem, Felipe. Vou cuidar bem dele.

O Paulinho vai ficar bem, e eu preciso trabalhar. Não está fácil arrumar um trabalhinho bom como esse de assentar piso. Trabalho na sombra, de leve, sem carregar muito peso. Ô, trabalho abençoado! Nem pesa nada ter de ir até Jakra, a cidade vizinha, de ônibus. Bom que vai dar uma graninha boa por alguns meses, opa! No fim desse vou comprar até uma bicicleta para o Paulinho começar a aprender desde cedo. Se bem que, a cada dia as crianças estão mais prematuras, fazendo as coisas cada vez mais cedo, não me surpreenderei se o Paulinho conseguir andar sem rodinhas antes de fazer dois anos de idade.

Nossa! As coisas estão caminhando na minha vida, graças a Deus! Bato uma palma aqui mesmo no corredor, antes do portãozinho que dá para a rua, aonde vou esperar o ônibus, sem esquecer o Paulinho, pois o amo demais; mas também sem ficar preocupado demais com o moleque. Vai arrasar!

*

Desço do ônibus no ponto mais próximo à casa da tia Gi. Vou entrando na casa dela sem pedir permissão, afinal, é como se fôssemos da mesma família. O Bruninho já deve estar na igreja para o ensaio, então não tem quem zoar aqui. Só pegarei o Paulinho e irei para minha casa.

— O Paulinho não tá aqui, não; deve ter ido embora sozinho mesmo — a tia me responde. — Ele não tinha uma cópia da chave?

— Tem sim. Mas você não foi com ele? Deixou o moleque ir sozinho, tia?

— Nem é tão longe a sua casa, Felipe.

Nessas horas que eu vejo como faz falta a mãe dele. Duvido que ela deixaria o Paulinho andar sozinho pelas ruas da cidade. Ele acabou de aprender a andar, nem consegue ir rápido ainda. Pô, ele nem tem dois anos ainda. Que tia mais sem noção, meu!

Chego em casa e a porta está trancada. Ainda entro e procuro pelo Paulinho, mas ninguém está dentro da casa. Falo com o vizinho, mas ele não viu ninguém entrando. Deixo-o sem saber o que está acontecendo e saio. Passo na farmácia para pegar um remédio para dor de cabeça (e saio de lá com mais dor ainda por causa da atendente que ficou dando em cima de mim) e depois vou à igreja. O Bruninho está com a obreira Bia e outros jovens evangelizando, e eu os interrompo por um instante para chamar meu primo à parte e contar o que houve.

— Calma, Felipe — ele responde, falando tão rápido que emenda as palavras, como sempre fala, mas consigo entender por estar acostumado. — Não fica nervoso, não precisa ficar desesperado, não, cara, fica tranquilo que o Paulinho vai aparecer.

— Ih, Bruninho, nem tô preocupado. Ele vai aparecer, tô determinado. Ele tá protegido por Deus, nada vai acontecer de ruim, não.

— Isso aí, primo, fica na fé, e vamos achá-lo.

— Viu, Bruno — digo ainda mais baixo. — Não conta pra ninguém aí dos jovens. Não precisa preocupar os outros com isso.

— Oloco, cara, a gente é família. Conta com nós...

— Sério, mesmo, conta pra ninguém não.

— Pelo menos a polícia... não sei, você que sabe.

Sei que o Paulinho não fica muito à vontade comigo, pois já está começando a criar uma personalidade bem diferente da minha. Ele conhece vários outros moleques da escolinha que têm pais menos legais, e acho que ele prefere o jeito dos pais dos outros. Ah, mas não aceito isso! Meu filho tem que se tornar um cara confiante, não pode dar mole para nenhum sentimento negativo, como tristeza ou medo. Para depois ficar sofrendo, sendo um adulto mole? Tá amarrado! Vou achar o Paulinho e ensiná-lo a ser homem. Melhor: homem de Deus. Corajoso, confiante, alegre, do bem. E depois de receber o Espírito Santo, quando eu conseguir uma mãe para ele, aí vai arrasar.

*

O Bruninho cumpriu a promessa. Chegou o fim de semana, voltamos do Conexão (que arrasou, moleque! Zebulom sempre arrebenta), e ninguém, nem a obreira Bia, comentou nada do Paulinho. Que fique assim.

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora