73 - Bia

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Que sacrifício! Bater palmas de casa em casa oferecendo rissoles é uma humilhação, mas o que mais posso fazer para juntar um pouco de dinheiro para ajudar a comprar o novo computador para o Mídia? Se bem que estes rissoles não são os melhores do mundo, pois não sou ainda muito boa em cozinhar, pelo menos metade eu preciso vender para cobrir os custos.

O caminho que planejei me leva à casa da Valéria. Estou ansiosa para saber como o bebezinho dela está. E qual é minha surpresa quando bato palmas no portão dela?

— Ah, que lindinho o Michael! Posso ver?

— Oi, Bia. Entre aí. Tá aberto — Valéria diz e olha por cima do muro, mas não tem ninguém na casa vizinha.

Michael é uma lindeza. Quem não conhece seu problema nem pode imaginar, baseando-se em sua aparência, que ele tenha um. Só o cabelo que ainda não cobre a cabeça por igual, mas isso com o tempo se arruma.

— Você sabe que pode contar conosco, certo?

— Tá, tá, mas agora tô bem, não preciso mais de cestas.

— Não é disso que eu falo agora, mas de você mesma. Se precisar de alguma orientação, ou só desabafar, conte comigo.

Valéria é bem resistente, mas posso ver em seus olhos que ela precisa e quer ajuda. É uma pena que seu orgulho ainda não foi quebrado. Tento contorná-lo abrindo mais a conversa, mas sem exigir muito, pois tenho metade da caixa de salgados ainda para vender hoje.

— Está sabendo da virose? O Felipe esteve semana passada no hospital com o Paulinho por causa disso. Coitado do Paulinho, tá todo irritado.

— Sim, eu sei, já estou tomando os cuidados que o doutor recomendou. Fica tranquila, Bia.

Mentira dela, tenho certeza. Mas deixo quieto e encerro a conversa chamando-a para buscar o Espírito Santo hoje na reunião, porém ela rejeita mais um convite. Poxa! O que estou fazendo de errado? Tento me aproximar, ser uma boa amiga, não ser chata, e mesmo assim ela não me dá ouvidos. Só posso orar por ela e amarrar esse bicho desgraçado que a deixa surda à voz de Deus.

Depois da casa da Valéria, passo cinco quarteirões sem vender um único rissole. Chega dessa situação! Ou é ou não é!

A próxima casa me segura por cinco minutos, pois não aceito sair sem vender. E a próxima mais três. Com isso gasto toda a tarde da minha inesperada folga nessa rua, mas chego à rua seguinte com a caixa de isopor quase vazia.

Termino o bairro sem vender mais nenhum. Isso não é para mim. Nem por causa dos nãos, pois já ouço muitos nãos dos afastados; e depois de tantos da Valéria, nem dói mais. É pela demora no resultado. Preciso de outra ideia, uma que dê resultado logo, pois quanto mais o tempo passa, mais almas estão indo para o inferno.

*

Zaki me chama num canto após o grito de guerra na roda dos jovens.

— Bianca, sábado terá uma festinha de aniversário, e eu gostaria de ter sua presença.

— E o Força Jovem?

— Dará tempo, pois a festa começará às oito.

Festa? Tá amarrado! Que jovem de Deus é esse que vai em festas? Não posso deixar que me contamine. Esse relacionamento não está certo.

— Zaki, não vou. Você nunca vem quando eu chamo para evangelizar ou fazer qualquer coisa pela obra de Deus, só vai nas reuniões do Universitários. Mas você é FJ, e FJ de verdade ajuda em todos os projetos, não só um. Você sempre dá uma desculpa, que precisa trabalhar e tal. Então, Zaki, eu não...

— Mas, Bianca, é verdade! Eu preciso trabalhar até mais tarde e estudar também. Esta é minha parte na obra, garantir seu sustento. Ainda que não hoje, mas no futuro.

— Quem sustenta a obra é Deus. Você precisa estar na fé. Está ou não está?

— Que pergunta é essa, Bianca? Claro que estou. Apenas estou em outro nível. Enquanto a maioria está no nível mais baixo, de ir à rua, de porta em porta, eu busco outro nível, mais alto, e ajudar nos bastidores. Entende?

Como posso ter me envolvido com uma pessoa tão ridícula? Impossível que dê certo. Tiro a aliança do dedo e lha entrego.

— Não dá, Zaki. Eu não te entendo, e acho que nunca vou entender como uma pessoa que se diz de Deus não tem os mesmos objetivos que eu. A paixão pelas almas... O amor pela obra...

Zaki tenta argumentar e não pega a aliança. Deixo-a no banco e sigo para a sala das obreiras para tirar o uniforme e ir embora. Uma lágrima escorre na minha maquiagem, mas é melhor assim. Ele nem se interessa pelo que é mais importante para mim: as almas, e a Força Jovem. Não vou ficar com alguém que se acha superior. Só vou aceitar me relacionar outra vez quando encontrar alguém com os mesmos objetivos, que seja realmente perfeito para mim.

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora