27 - Meck

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Gostaram da minha atuação. Incrível, pois sou um dos piores atores que conheço. Nem consigo fingir um sorriso direito, fica parecendo que estou com gases. Mas me chamaram para a próxima peça, por isso estou aqui novamente.

O pessoal chega em cima da hora, e hoje tem uma menina nova; uma que veio no último Conexão.

— Thalia será a jovem que você, Meck, vai guiar. Você será Jesus.

A obreira Bia fala com tanta convicção que parece que a jovem nova já ensaiou antes e se saiu muito bem. Será que ela é boa? Não podemos fazer o teatro de qualquer jeito. Mesmo não sendo uma peça difícil, Set me free ainda exige ensaio.

Fico um pouco constrangido, pois preciso pegar nas mãos da jovem nova. Thalia tem um sorriso tão lindo e inocente que minha maior dificuldade nem é fazer bem o meu papel, e sim não ficar me perdendo naquele sorriso acompanhado do par de joias verdes de seus olhos e emoldurado pela bela cabeleira alaranjada.

Todos já conhecíamos a peça, até Thalia. Será que ela era de alguma igreja antes? Por isso o ensaio flui com bastante naturalidade. Meus travamentos foram apenas ao girá-la com a mão sobre ela, como uma dança. Ela gira com força, sem vergonha, diferente de mim, que fico nervoso ao pensar no dia, embora sábado passado eu tenha feito tudo certinho na hora. No seu giro rápido, os cabelos tocam em meu rosto, pois ela é quase tão alta quanto eu, e eu fico outra vez com aquela sensação na memória. Mas é apenas o arrepio que esse toque dá, igual a quando bate uma brisa fria, nada de maldade. Meu foco está, agora, no ensaio.

Mas minha luta contra o coração nunca termina. Sempre que Thalia olha para mim sorrindo, eu desvio o olhar. Foi de tanto a obreira olhar assim para mim que acabei achando que havia algo que não existia; e não quero passar por isso de novo.

Perco o momento de chamar sua personagem, perdido nesses pensamentos, e a obreira me avisa prontamente. Thalia também parece preocupada.

— Tá tudo bem? — ela diz com uma voz suave.

Apenas aceno que sim com a cabeça e continuamos. Tudo dá certo, o que me dá confiança para não travar no sábado. É estranho ficar tão contente com o teatro, pois eu sou o único Mídia daqui e não posso deixar o projeto ao qual Deus me chamou em segundo plano. Ele já não está indo tão bem comigo sozinho, imagina se ficar sem ninguém.

— Muito bem, Thalia — a obreira Bia lhe diz num abraço. Ela manda depois um joia para mim. — Você também foi bem, Meck. Agora vai você, Duda.

Tinha esquecido: Thalia acabou de chegar no grupo, por isso ainda precisa esperar algum tempo antes de se apresentar no Conexão. Mas ela foi tão bem no ensaio que Duda, que também é boa, fica parecendo estar aprendendo.

Foco no projeto. Ganhar almas. Mas num cantinho da minha mente não consigo impedir pensamentos de virem. Será que essa menina nova é a tal enviada de Deus? Só fui na Terapia um dia, então não acredito que seja, pelo menos agora. Mas e no futuro, quem garante? Quando eu estiver bem financeiramente...

Ah! Se quer saber, vou continuar indo na Terapia até saber se devo investir ou não. E até lá, continuo meu sacrifício pessoal de ignorar toda a beleza que meus olhos veem nas meninas.

E suportar vê-las dando tanta a atenção ao menino mais falador da igreja. Apenas fico por perto ouvindo-as falando sobre o que usarão no casamento da obreira Lana. Gosto de ouvir, embora não me sinta à vontade para comentar, nem mesmo quando perguntam minha opinião nesse assunto.

Vou para o bebedouro, e enquanto tomo água, Thalia chega para fazer o mesmo.

— Essas meninas são bem vaidosas pra gente de igreja, né?

— Ah, elas estão entusiasmadas. É que uma obreira amiga delas vai casar, e elas ficam falando das roupas o tempo todo! Coisa de menina, né?

Thalia franze a testa.

— Como assim, coisa de menina? Eu não sou assim. Pareço menino?

Fico sem resposta. Sei que nem todas são assim, só quis fazer uma brincadeira. Esqueci de não dar atenção a uma... menina. Mas ela abre uma risada, o que me dá um alívio. Uma menina que ri comigo?

— Não, não! Entendo que tem meninas que não gostam, assim como tem meninos que gostam.

Thalia dá mais uma risada, esta mais contida. Ficamos trocando ideias sem ligação nenhuma por poucos minutinhos antes da Bia nos chamar para a reunião. E hoje fico sem resistência. Agora tenho um objetivo na Terapia.

*

Sábado dá tudo certo. Duda fez um bom papel, e a obreira conseguiu tirar algumas fotos aproveitáveis do teatro para eu usar no mosaico. Tinha uns dois jovens novos no Conexão. Uma alma já vale mais do que tudo. Duas então, arrebentou!

E tem aquela ruivinha que fala comigo como se me conhecesse há anos. Uma pessoa que me entende, e vale a pena ter mais perto. Uma amiga que quero ter sempre. Mesmo a obreira olhando de rabo de olho para nós quando estamos conversando.

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora