11 - Felipe

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Paulinho veio pulando de alegria no caminho até a casa da tia. O coitado do moleque me implorou para ficar com um cachorrinho que estava mancando na rua, e deu trabalho para convencê-lo a esquecer aquele bicho. Não sei o que esse moleque tem que só faz o que não quero que faça. Parece que é chato de propósito.

Ainda bem que criança tem memória curta. Digo com toda certeza, pois não lembro muito de quando eu era uma. A memória mais antiga que tenho é da primeira vez que tomei uma cervejinha com meu pai, num churrasco de família, quando eu tinha seis anos, eu acho. Boa! Foi no mesmo dia que um tio me ensinou a matar insetos com gasolina. Naquela noite eu vomitei tudo, mas admito que até era bom! Mas já passou.

Da mesma forma passou tudo que senti pela mãe do Paulinho. Mesmo os olhos de japonês dele e a cicatriz na minha testa sempre me lembrando daquela trouxa, a senhorita Mirnez não me causa mais palpitação de paixão. Dá mais nojo que qualquer coisa.

E não posso esquecer meu primeiro fora, com aquela ruivinha do primário, a Thalia. Às vezes fico pensando: como ela está agora? Ela era a isolada da turma, e mesmo assim a mais filezinha.

Enquanto viajo nas poucas memórias que tenho de antigamente, ouço a barulheira das crianças e a música infantil na casa da tia. Paulinho dispara na frente e, quando chego, ele está paradão diante do bolo de chocolate.

— Só depois do parabéns, moleque!

Ele murcha o rosto, mas eu o animo dando um dos copinhos com brigadeiro. Ainda não é hora de comer brigadeiro!

— Não conta pra ninguém, hein?!

Não é dos melhores, mas serve para adoçar a boca. Bruninho passa pela mesa quando como o brigadeiro.

— Felipe, que isso, meu? Deixa os doces aí!

— Relaxa, Bruninho!

— Felipe, Felipe! — Atrás de mim, a voz inconfundível da tia também tem um tom impossível de não perceber. — Pensa que não vi, menino?

Ela sorri, e nós caímos na risada juntos. É quando ela me entrega um copo de plástico e enche de refrigerante. Dou um para o Paulinho também. O menino vira de uma vez.

— O-HÔ! Puxou o papai, hein, filhão!

Pego o pequeno no colo e lhe faço um cafuné. Ele volta ao chão com o cabelo todo desarrumado e o copo vazio para cima.

— Quer mais? — minha tia pergunta. — Cuidado, menino, assim você vai fazer xixi na cama. — Ela olha para mim de lado, sem virar a cabeça, e sorri. — Puxou o papai, né? Vai puxar até nisso, Paulinho?

Não estou gostando dessa conversa. Ela continua:

— Seu papai que fazia xixi na cama.

Outra tia ouve e as duas começam a tagarelar sobre o passado podre. Paulinho apenas bebe seu copo, desatento a qualquer palavra das velhas. As duas continuam trocando palavras sobre mim. Meu copo começa a tremer na mão, e derramo algumas gotas de refrigerante sobre a mesa. Nem vi se pegou no bolo, mas que se dane.

Calem a boca! Calem a boca! Não falem de mim! CALEM!

— CALEM A BOCA!

Silêncio na festa. Respiro fundo. Ouço um chiado; só eu mesmo, pois parece estar dentro da minha cabeça.

— Pô, tia, vamos falar de coisa boa aí! Cadê o aniversariante?

A velharada volta a xeretar minha vida depois que o ambiente deixou de ser silencioso. Meus parentes são os piores. Os que ficam cheios da grana somem, e os que ficam aqui na vida humilde só falam dos outros. Parente é doença!

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora