78 - Valéria

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Perdi o ônibus. Que desordem! Agora vou chegar atrasada no postinho por causa do cego do motorista.

Atravesso várias ruas com Michael no colo e sombrinha na mão, pelo clima nublado. Quem diria que o trânsito estaria tão pesado em plena terça-feira?

Vrum! Zum! Bi-bi! Pela primeira vez eu vejo trânsito intenso na avenida principal de Marazul. Para uma cidade deste tamanho ter tantos carros assim deve ter algum evento grande acontecendo. Não é época de corrida. Jogo de futebol tenho certeza que não tem. Festa de balada não é, senão Karla teria me chamado, com certeza.

Boto o pé na faixa, mas o motorista idiota não para. Xingo o mais alto que posso enquanto acompanho com a cabeça o carro indo. Uma buzina me faz virar de repente para sentir o impacto do para-choque em minhas pernas! Sinto-me caindo lentamente, e consigo virar para não cair por cima do Michael. Vou de bunda na faixa elevada. Fica tudo dolorido mas preciso ir ao posto, mesmo mancando e xingando. Atrás da minha calça está sujo de sangue.

Outra mulher que veio atrás de mim só fala de Deus, que devo agradecer, podia ter acontecido algo mais grave e tal... Tudo bem, eu sei, mas não estou a fim de ficar ouvindo sermão de uma qualquer. Preciso chegar logo ao posto para fazer os exames do Michael e, agora, tratar também de mim. As atendentes me deixam fazer uma ligação para chamar alguém (que boazinhas!), e Karla não demora em atender.

Meu Deus, eu pedi um sinal. Que tipo de sinal é esse?

*

Depois de passar o calor da emoção, chegando em casa com ajuda de Karla, me pego em silêncio pensando no que aconteceu. De acordo com os exames, Michael continua com aquele problema no cérebro, e preciso me preparar para conviver com um futuro deficiente. O doutor não podia encontrar uma palavra melhor? Chamou meu filho de retardado mental na minha frente, mas com profissionalismo. Que se dane seu profissionalismo, pois não consegue achar uma cura.

Karla fica calada na frente da televisão, mas aquelas duas vozes opostas dentro da mente falam por conta própria. Principalmente a que impele a ir para o quarto, trancar a porta e desabafar.

Meu Deus, é pedir muito? Eu só quero que meu filho seja saudável. Para quê o Senhor me deu um filho assim? Para sofrer e se tornar um adulto dependente e incapaz de realizar seus sonhos? Senhor, se é culpa minha... deve ser... Pensando bem, eu não fui uma boa filha, se é que posso me considerar filha. Que filha abandona o pai assim, de boa? O Senhor me conhece e sabe que eu quero voltar, mas não consigo ficar muito tempo perto de uma certa pessoa... Ah, Deus, me ajuda a superar isso. Já faz tanto tempo, ela nem deve pensar naquilo mais. Eu quero perdoar a Bia, mas não consigo. Deus, me ajude. Por favor! Hoje eu quase perdi a vida, e mais, a salvação. Senhor, me salva. Salva minha alma. Eu vou tenta mudar, mas sozinha não sei se consigo. Me ajuda!

Antes de sair do quarto, minutos depois, seco o rosto e olho pela janela para o céu. Não havia percebido como ele está bonito.

*

— O que aconteceu, Val? Tá diferente.

— Eu? Eu não. Só tô... em paz.

Karla abre uma gargalhada incrédula, mas ignoro e sigo para a cozinha, onde está meu telefone. Procuro pelo número da Bia e, pela primeira vez depois de anos, tomo a iniciativa de lhe enviar uma mensagem.

Você (19h28): Oi, Bia. Preciso falar com vc. Pode ligar pra mim?

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora