Consegui um crédito para ligar para minha patroa, mas é tarde: ela já foi para sua viagem de férias. Vida boa a de quem vive à custa do trabalho dos outros! Quem atendeu a ligação foi seu marido, um cara de pau conhecido em toda a cidade. Ou melhor, por mulheres de toda a cidade. Infelizmente o infeliz pode ser considerado também meu patrão.
O velho tem a cara mais enrugada que um maracujá-de-gaveta podre. Nem por isso deixa de dar em cima de qualquer rabo de saia. Totalmente sem vergonha. Ele se oferece para vir em minha casa trazer o vale, mas recuso imediatamente. Não quero um velho babão vindo para cima de mim.
Minha última esperança, odeio admitir, são eles. Só tenho mais essa opção, a que o médico comentou brevemente: o Centro de Ajuda. A única pessoa com quem tenho contato lá é a Bia. Oh! Desordem! Pedir ajuda para aquela metida? O que uma mãe não faz pelo filho? Mando uma mensagem, mas não é entregue. A metida deve estar muito ocupada para me atender.
A porta se abre com violência. Karla chega soltando os cachorros, revoltada com algo que aconteceu no trabalho. Nisso quebra o vaso perto da porta, espalhando terra pela sala. Ô, desordem! Graças a Deus ela mesma limpa tudo antes de sentar no sofá e sua presença praticamente sumir da casa diante da televisão. Aproveito para ir ao meu quarto fazer algo que há muito tempo não faço. Será que ele ainda vai me ouvir?
Deus, eu sei que não mereço, mas me dá uma chance. Não estou mais aguentando essa situação. Ninguém me ajuda, e eu não sei o que faço. Meu filho precisa de alimentos, mas nem a veada da Karla, minha única amiga, me ajuda com as compras. Nem a Bia, que supostamente é serva do Senhor, me atende. Deus, não me deixa perder o Michael, é tudo que peço. Um sinal.
Abro os olhos e me levanto do lado da cama. Lá fora o sol começa a sumir atrás dos prédios, e logo estará atrás do Pacífico. Meu celular toca.
— Alô? — Bia responde do outro lado com a voz embargada. — Valéria, é você? Tudo bem?
Tiro o telefone do ouvido sentindo algo que não sei o que é. Uma mistura de raiva com pena. Por que ela está com a voz assim? Nunca ouvi, pois ela sempre foi para cima. Mas isso não é problema meu. Respiro fundo e pego o telefone de volta. Digo apenas oi e então ficamos em silêncio por alguns instantes. Enfrento minha própria vontade de desligar para dizer a verdade.
— Bia, preciso de ajuda. Sabe se o pessoal do Centro de Ajuda tem cestas pra doar?
Bia leva alguns momentos para responder. Só falta estar, como sempre, tentando me ler, mas pela voz. A Bia de sempre, achando que sabe tudo.
— Se não, tanto faz, eu dou meu jeito de...
— Não, Valéria, nós temos sim — ela funga. — Passa na igreja hoje que nós podemos te arrumar uma.
Ela não perde tempo. Só estou pedindo comida e ela já quer que eu vá à igreja.
— Valéria, eu queria te pedir desculpas.
Continuo em silêncio, pois não sei como responder.
— Eu acho que te magoei de alguma forma, e não quero que isso seja motivo para sermos tão distantes. Não é porque você não quer ir à igreja que não podemos voltar a ser amigas. Você é muito especial, não só para Deus, mas para mim e para nós todos da FJ, pode acreditar. Por isso que sou tão insistente, você deve me achar chata até, mas é para o seu bem. Porque te amamos, Valéria.
Há quanto tempo não ouço alguém dizer que ama... Isso bate no fundo e extravasa pelos olhos. Odeio sentir isso pela voz da Bia.
— Que horas posso ir na igreja? — pergunto quase sem voz.
— Eu estou indo lá agora, e fico até depois da reunião. Venha para a reunião hoje, buscar o Espírito Santo, é a melhor coisa.
Karla me chama. Deve ter acabado a novela e ela quer jantar. Nem para aprender a fazer a própria comida ela serve.
— Vou tentar ir, Bia. Até porque não tenho mais ninguém pra quem pedir ajuda.
Desligo e fico pensando em porque ela também está triste. Mas Karla corta meus pensamentos ao me chamar. Preparo um dos últimos pacotes de macarrão antes de procurar uma roupa melhorzinha. Nem respondo quando Karla me pergunta aonde vou.
Apenas vou. Pelo Michael.
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Quantas dúvidas
General FictionOs primos Felipe e Bruno tentam vencer os próprios defeitos ao lado de Bia, a obreira perfeita que abre mão da própria felicidade para ajudar os outros, apontando seus defeitos. Seus velhos amigos Meck e Valéria pensam estar bem, mas com as dificuld...