Passo a manhã toda em casa com minha família. Talvez por ter ficado ontem o dia todo fora de casa, o feriado na chácara com a galera, minha mãe tenha sentido falta de mim e me pediu para ficar com ela hoje; ela também está mais pegajosa com minha irmã e eu. Amo minha mãe, e fico ajudando-a na limpeza da cozinha e do quintal, mesmo não gostando de fazer esses serviços. Mas hoje é terça, dia mais barato do cinema, e tem sessão retrô com um filmaço top: Morri Para Viver, que foi o maior sucesso de bilheteria no Brasil quando lançado poucos anos antes de a protagonista morrer na vida real. Agora é a vez de arrebentar aqui também!
Cada um vai por conta, e nos encontraremos na bilheteria. Minha mãe fica triste quando peço para sair, mesmo tendo passado a manhã toda com ela. Ela sempre foi tão forte e para cima; algo aconteceu para ela ter ficado grudenta de ontem para hoje? O caminho todo não paro de pensar nisso, e chego ao shopping sem conseguir imaginar o que possa ter ocorrido.
Antes do filme pego a fila para comprar um sorvete. Tenho tempo de sobra.
— Olá, Bruno. — Atrás de mim chega uma pessoa na fila.
— Professor Igor, e aí?
— Passeando no shopping, hã? Resolveu curtir a vida?
— Que, professor, eu curto a vida todo dia.
Deus me ajude! Ele vai começar a falar mal de Deus.
— Cuidado para não ser castigado depois, sabe — ele sorri.
E se a alma dele também está na minha responsabilidade? Estou cansado de ter que mudar para cada lugar que frequento. Preciso me assumir como servo de Deus diante de todos. Mas aqui no shopping é lugar de falar de Jesus?
Sim! É isso que meus amigos vieram fazer.
— Professor, vamos ver um filme? Esse Morri Para Viver tá em cartaz essa semana na sessão retrô. É uma história de superação muito top, violenta mesmo. Nota dez barra dez.
— Bruno, Bruno — o professor tira os óculos. — Esses filmes são todos manipulados, pura propaganda religiosa, não tem nada de verdade nessas biografias. Até essa nota, todo mundo sabe que é um bando de robôs que deram dez nessa porcaria. E o sucesso de bilheteria não passa de fraude.
— Eu sou um robô? Eu dei dez porque o filme arrebenta! O senhor já assistiu?
— Deu dez de graça? Bruno, você é tão inteligente e ainda cai nisso? Não entendo.
Minha vez está chegando, mas ainda tenho alguns minutinhos antes de sair de perto do professor de uma vez. Minha consciência me diz para falar algo inteligente para ele, mas o quê?
— Professor, o senhor acredita na tabela periódica? E que aqueles elementos realmente existem? E que...
— Bruno, não brinque comigo!
— ...E que existem aquelas partículas todas dentro de cada átomo? O senhor já viu? Ou apenas leu em livros de pessoas que o senhor também não conhece pessoalmente?
— Bruno, os elementos existem de fato. Eu posso levar você a uma universidade para ver pelo microscópio eletrônico.
— E o microscópio? Quem garante ao senhor que as imagens dele não são todas... manipuladas, e não são de verdade?
O professor abre a boca e logo a fecha, formando no lugar um sorriso. Chega minha vez de ser atendido.
— Eu sei o que você está tentando fazer, Bruno. Sei. Usar minhas palavras contra mim... Você é mesmo muito inteligente. Bom, a fila, é sua vez já, Bruno. Espero que se arrependa logo de desperdiçar essa inteligência em filosofias sem pé nem cabeça.
— E eu espero que o senhor se arrependa seus pecados antes que seja tarde. Tchau!
Sorrio de volta e me despeço dele para finalmente pegar meu sorvete. Na metade chegam alguns dos meus amigos da FJ para chamarmos pessoas para verem o filmão conosco. Vai arrebentar! Vamos ganhar muitas almas.
Obrigado, meu Deus, meu pai, por me dar força pra assumir minha fé em público pela primeira vez, meu pai.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Quantas dúvidas
Ficción GeneralOs primos Felipe e Bruno tentam vencer os próprios defeitos ao lado de Bia, a obreira perfeita que abre mão da própria felicidade para ajudar os outros, apontando seus defeitos. Seus velhos amigos Meck e Valéria pensam estar bem, mas com as dificuld...