Quantas dúvidas

55 - Bia

Na praça tem pouca gente hoje. Talvez o clima fresco impeça os jovens de curtiram a marina. Então vamos visitar os afastados. Os jovens formaram pares tão rápido que só me restou o Felipe. Deixo como está e vamos nós dois para as ruas mais ao sul.

— Obreira, vamos passar na Valéria. É hoje que ela vai aceitar! — Felipe bate uma palma e esfrega as mãos adiante. Acabou de receber o Espírito Santo, segundo ele, e já está decidido a ser usado para ganhar uma alma. Esse é o espírito!

Valéria nos atende com um sorriso bem falso, pois não se reflete nos olhos. Suponho que seja pelo bebê, pois ela está enorme! Valéria já era cheiinha, e agora então!

— AÔO, Valéria! Tá enorme esse neném aí, hein?!

Dou-lhe um tapa no ombro. — Não pode falar assim — sussurro para Felipe, que apenas ri da minha cara. E o temor?

Valéria é gentil e nos convida a entrar na sua sala. É um ótimo primeiro passo. Felipe e eu recusamos o convite de sentarmos no sofá porque ainda há outros afastados para visitar. Falamos rapidamente sobre a correria do dia a dia até chegar ao ponto.

— Valéria, volta para a FJ! Eu tenho certeza de que aí dentro da sua memória tem muitos motivos para você voltar, você apenas não admite.

Ao ser direta, Valéria olha para o chão por um momento.

— É, ô, Valéria, a gente não morde! Só o pastor às vezes...

Consigo fazer Felipe se calar antes de falar besteira! Aonde foi parar o domínio próprio desse rapaz? Valéria mexe os olhos rapidamente em resposta ao meu convite.

— Tenho que cuidar do Michael. Ele não tá muito bem, Bia.

— Então vamos hoje! Você lembra que sexta-feira é dia de oração forte.

— Não posso ficar saindo. E além do mais...

Valéria respira fundo e se senta, o que me deixa menos à vontade. Felipe se senta perto dela, e eu me aproximo do outro lado.

— Michael não é normal. Ele tem uma doença incurável, microcefalia.

Pela primeira vez ouço sobre microcefalia aqui. Nunca imaginei que pudesse haver essa doença no presente, depois de ter sido erradicada em todas as Américas.

— Valéria, creia, Deus pode curá-lo. Venha hoje na igreja.

Não perdoo as lágrimas que escorrem do rosto dela e insisto no convite que pode mudar sua vida. Se ela somente aceitasse...

— Vamos, Val, vai arrasar! — Felipe a levanta com um braço, o que tira um sorriso dela. E de mim.

— Vou pensar.

Pelos olhos dela imagino que esteja com vergonha do passado.

— Não, Valéria, pare com essa vergonha! Venha sim. Não importa sua situação. Quer saber? Ninguém tem a vida perfeitinha! Eu também... já pedi ajuda para a igreja. Não precisa ter vergonha. Estamos ali para ajudar mesmo no possível, certo?

Felipe e eu saímos da casa dela contentes com o resultado e prontos para ir à próxima casa.

*

Chego no apartamento moída, depois de encarar a maior guerra na oração forte. A obreira Mokado, coitada! Se manifestar um encosto na mão dela, vêm logo três obreiros homens para socorrê-la. A impressão é que qualquer movimento brusco pode quebrar o braço fininho dela.

— Ei, Bia, olha aqui — diz Mokado com o celular na mão. Na tela a foto de um rapaz bonito, olhos verdes, cabelo arrepiadinho...

— Não tenho tempo para ver isso.

— Vou levar para o pastor ver se aprova, tá?

Deixo-a falando sozinha e vou para o quarto, em privado, para ver se o Meck conseguiu finalmente me mandar o crédito do dinheiro do notebook. Ele está numa situação realmente difícil, mas entendo. Mas, mesmo se ele não conseguir, esse computador já está nas mãos de Deus. Se não ficar para o Meck, fica na igreja para o Mídia.

Antes de dormir, olhando para o teto, me pego pensando na mãe. Bruninho perdeu a sua e, apesar da dor e da dificuldade da nova fase da vida, ele tem superado bem. Bruninho é forte! Ele finalmente está assumindo a fé. Será que eu teria a mesma força se hoje minha mãe partisse? E eu aqui, longe dela há semanas? Espero que, mesmo eu querendo meu próprio apartamento, possa voltar para casa antes, e logo. Não sei quanto tempo minha mãe tem. Deus toque em minha mãe para que ela possa me perdoar, antes que seja tarde de mais.