47 - Valéria

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— Tomara que o doutor não me venha com mais más notícias hoje de novo.

— Não, amiga, vai dar tudo certo hoje.

Karla me ajuda na caminhada do ônibus até a sala de espera e depois até a porta do atendimento. Querendo ou não, ela foi a única que se lembrou de mim no feriado; a única que passou dia vinte e cinco comigo. Apesar de ela ser a maior piranha, é minha única amiga de verdade. É quem me apoia e tenta melhorar meu astral.

— Vi na cara do infeliz que tinha algo errado. Meu bebê, meu Michael, tem algo com ele, e o doutor não me diz logo.

— Calma, amiga — Karla diz pegando minha cabeça pelos lados. — Vai. Dar. Tudo. Certo. Val, calma!

Enquanto respondo seu incentivo com um riso, chega o doutor e nos chama com o tablet transparente em mãos.

— Valéria, a senhora está se alimentando conforme a dieta?

— Dieta? Tá me chamando de gorda? Não preciso de dieta, doutor; já estou perfeita.

— Não é pela senhora, e sim pelo bebê. Leve a sério, Valéria.

— E quem você pensa que é pra intimidar minha amiga assim? — Karla encara o médico, causando comoção na sala de atendimento.

Pelo bebê. Com isso não consigo responder ao médico. Peço para Karla me aguardar enquanto vou ao consultório para ouvir com seriedade o que ele tem a dizer sobre o futuro do meu filho. A dieta que ele me recomendou no exame passado foi impossível de cumprir, e isso deixa o médico furioso.

— Doutor, acha que é fácil? O pai dele não levanta uma palha pelo bebê. Tenho que me virar sozinha, trabalhar; não tenho crédito nem pra mim, de onde vou arrumar pra comprar comida pra dois? Não ganho bem igual você, sentado aí a tarde toda no ar-condicionado e a conta gorda. Eu tenho que me danar toda fazendo faxina pra arrumar umas moedas.

— Escute, escute, Karla! É a saúde do bebê que está em jogo. Eu sei o quanto você ganha, está na sua ficha, e acredito que você possa seguir com uma boa alimentação, sim. Reveja suas prioridades.

Esse doutorzinho não entende nada. Claro, ele é homem, não deve ter filhos, e com certeza nunca esteve grávido. Tento colocar na cabeça dele que a vida não é tão simples como ele pensa, mas é tudo em vão. Ele se levanta e coloca algumas folhas contra a luz. Ali vejo um borrão do que será o maior jogador de futebol do mundo: meu Michael. O doutor, sempre pessimista, fica apontando defeitos na cabeça do bebê. Não importa o que digam, se sua cabeça é um pouco menor, se o próprio corpo está menor que o esperado para seis meses de gestação; Michael é perfeito.

— Valéria, preste atenção. Olhe para mim, em meus olhos. Você precisa levar a sério sua alimentação, ou seu bebê pode sofrer ainda mais. Procure um Centro de Ajuda, se for o caso.

— Centro de Ajuda? Pedir ajuda para aqueles insensíveis egoístas? Jamais.

Cruzo os braços sobre a barriga com cuidado e revolta ao mesmo tempo. Viro a cabeça e ameaço me levantar para sair do consultório.

— Há ainda uma última opção para você. Uma nova lei, veja...

Ele puxa um panfleto da gaveta com letras enormes: Por que carregar um peso? E no rodapé, um pouco menor: Agende sua interrupção no posto mais próximo.

— Não, doutor, tá amarrado — de onde ouvi isso mesmo? — Sei que tá uma guerra, mas eu não aceito isso. Ninguém vai tirar o Michael de mim. Ele vai nascer e ser o cara, tá ouvindo? — Dou as costas e saio pisando pesado. — Doutorzinho de meia tigela, assassinozinho, até parece. Vá tomar banho.

— E aí, amiga?

Karla me aguarda do lado da porta, como se estivesse ouvindo tudo. Que enxerida.

— Ah, ele falou que eu deveria... abortar... acha?

— Deixa comigo que eu dou uma porrada na cara desse...

— Não, vamos embora daqui. Esse lugar me dá nojo, essa gente não tá nem aí pra nós, é tudo mentira.

A caminho de casa, falo com mais calma das verdades, o que me faz pensar. Realmente preciso rever minha vida. Isso inclui Karla. Ela não me ajuda em nada, e deveria, já que mora na minha casa. É isso: se ela ajudar na casa, pronto: o Michael terá uma boa alimentação. Quanto à microcefalia, não vai dar nada. Meu filho será perfeito!

Quantas dúvidasOnde histórias criam vida. Descubra agora